sexta-feira, 30 de maio de 2014

Autocarro para outro cais: 80 anos em 8 minutos


Cheguei à paragem do autocarro, na Rua do Ouro, por volta das oito e um quarto da noite. Só lá estava um senhor idoso, a quem perguntei se o 36 já tinha passado, ao que me respondeu que não, que também estava à espera dele há já alguns minutos. Eu disse-lhe que não era normal aquele autocarro demorar tanto mas que o placar eletrónico indicava uma espera de 20 minutos.
- Ah, ainda acredita nessa coisa?
Um 'pois' depois, e sem dar por isso, o senhor, simpático, começou por meter conversa comigo (pensando bem, eu é que meti conversa com ele ao perguntar pelo bus). Ouvi atentamente e depois de poucos segundos de conversa de circunstância habitual sobre transportes públicos desvendou:
- Olhe, estou quase a fazer oitenta anos, você é um jovem.
Retorqui com sinceridade dizendo que não parecia nada e que eu também não era assim tão jovem.
- Mas ainda dá os seus passeios pela cidade. - disse-lhe eu.
- Por enquanto! Sou cego de uma vista desde os três anos e a outra também está quase cega. Não sei o que hei-de fazer quando ficar sem ver nada...
Reparei que o olho direito estava fechado, como ficou a minha boca, num silêncio triste e conformado que sabia das dificuldades que essa falência total da visão traria, mas tentando esboçar um sorriso acalentador.


- A minha filha só me procura para pedir dinheiro. Quer dizer, em nome do meu genro, que não tem coragem para o fazer. Arranjou este rapaz que não trabalha... diz que não pode trabalhar porque tem o braço direito magoado há pouco tempo, mas eu acho que não. Porque, olhe, diz que era desde novo um filho  que precisava de atenção especial. Escreve com a mão esquerda. Por isso, está a ver... Aquele problema não é de agora. E ela é que vai ter comigo a pedir dinheiro. Já lhe emprestei 3.500 euros. Quer dizer, 'emprestadei'. No outro dia ele veio ter comigo e disse que me havia de devolver o dinheiro que lhe emprestei, mas eu respondi-lhe que não foi a ele que emprestei ('emprestadei') o dinheiro - não foi ele que mo pediu. Por isso não é ele que me deve nada. Então se não fosse um homenzinho não tinha sido ele a pedir? 

Eu nada mais tive que outro "pois" a acrescentar à conversa, e ele continuou:
- O meu neto fez anos a semana passada. Catorze. Eu liguei para lhe dar os parabéns e o miúdo estava sozinho em casa, os pais não tinham passado o dia com ele. O pai, pelo menos, que não trabalha. 

Avistei ao longe o enorme número do autocarro que esperávamos e interrompi-o dando-lhe conta dessa informação. Antes de entrarmos no autocarro despedimos-nos com um cumprimento de mão, daqueles que se dão a quem ouve as nossas histórias de vida. Agradeceu-me por ter tido a paciência de ouvir a sua, mas eu tentei assegurar-lhe:
- Ora essa! Também foi uma forma de passarmos o tempo à espera do autocarro. 
Deu-me a primazia de entrar e nunca mais nos vimos.
Se todas as esperas fossem preenchidas com conversas e histórias destas, com a simpatia e paciência de quem tem o privilégio de a poder partilhar com os outros...
Bem melhor do que um placar eletrónico que sempre se engana nos minutos, é o desabafar de uma vida, mesmo que essa seja composta por desenganos.
Foi assim que ao perguntar pelo 36 recebi em troca em 8 minutos uma história de vida com quase 80 anos.


Cícero dizia que "Os homens são como os vinhos: a idade azeda os maus e apura os bons."

terça-feira, 27 de maio de 2014

O mito do rapaz rosa


Conto Infantil Mitológico
O rapaz Rosa, não nasceu flor. É Rosa de nome. Hipólitus Rosa, assim é que é. Como o seu primeiro nome era complicado, e não tinha segundo, por Rosa era tratado. Ele não gostava nada, mas não tinha opção. Assim, por causa dos outros meninos, que gozavam com ele, ou melhor, com o seu nome, foi-se afastando deles e das brincadeiras de grupo. Isolou-se em si mesmo e nos seus próprios jogos. À medida que ia crescendo, mais se afastava e não deixava ninguém aproximar-se que era logo “picado” pela sua amargura.

Um dia, Tlaloc, o Deus asteca da Chuva e da Água (e que também era o Senhor do raio, do trovão e do relâmpago), mandou chamar o seu escravo Regador. Tlaloc também tinha um nome “esquisito”, e, como o rapaz Rosa, não gostava nada que gozassem com ele. E ninguém se atrevia a fazê-lo, pois ele, para além de Deus, era rei e Senhor! Tlaloc compadeceu-se do rapaz Rosa e, do alto do seu trono, vestindo o seu deslumbrante manto azul turquesa, ordenou o Regador, que era responsável pela distribuição da água pelos céus, pela terra e pelo Universo, que fosse espalhar a sua água por cima do rapaz Rosa.

Ele assim fez.
O rapaz Rosa, quando sentiu as pingas de água cairem sobre si, pensando que eram “apenas” gotas de chuva (de facto, isso parecia), deixou-se estar e molhar, pois a água era a única coisa que ele gostava, realmente, de tocar e que o tocasse. Alguns segundos apenas bastaram para ficar encharcado e a chuva parou de repente. Antes que tivesse, sequer, tempo de correr para casa e se secar, algo extraordinário aconteceu: da sua pele, por todos os lados, começaram a sair uns pequenos picos. Ao princípio pareciam borbulhas, ou até varicela. Mas ele não tinha comichão. E iam crescendo.

Da cabeça começou a brotar uma película que parecia descascar-se suavemente, e aos poucos, começou a assemelhar-se ao botão de uma flor. O seu corpo estava cada vez com mais picos, que iam crescendo até o cobrirem quase por completo. Em pouco tempo, o botão de flor, na sua cabeça, desabrochou e revelou ser uma rosa. O rapaz ficou completamente transformado nessa flor, dos pés à cabeça. Coberto com espinhos mas com uma lindíssima cabeça que atraia os insectos mais coloridos.

Estava concluído o processo de metamorfose do rapaz Rosa. Agora ninguém podia chegar perto dele, pois corria o risco de se picar. Apenas os seu novos e minúsculos amigos insectos. Ele não estava triste. Afinal, toda a sua vida tinha vivido a afastar-se de todos. Mas agora estava completamente isolado, restando-lhe caminhar, jardins fora, à procura de outros iguais a si, que não o “picariam” e a quem ele também não podia magoar.

Inspirado em:
«Quod petis, est musquam [...] ista repercussae, quam cernis, imaginis umbra est: nil habet ista sui.» Ovídio
Livro III d’As Metamorfoses, v.433 e ss. – Narciso e Eco (OVÍDIO, 2006); Na tradução de Domingos Lucas: “O que desejas não existe! [...] Essa sombra que vês é o reflexo da tua imagem! Nada tem de seu!”.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Vá errar: Ultimato à Europa e à opinião pública



Ao passar pela Praça do Comércio, em Lisboa, vejo que está tudo a postos para a festa.

Tudo  muito arranjadinho, em tons de azul, cor da bandeira da Europa, a fazer pandant com o Tejo, ecrã gigante, e penso:
- Bem esmeraram-se desta vez: até se vai poder ver os votos em direto!
Depois reparo nos títulos que também andam espalhados pela cidade, até pela Praça para onde me desloco regularmente para trabalhar: Champions League 2014. Afinal aquilo não está preparado para as eleições europeias de 2014, que se realizam no próximo domingo dia 25, mas para um grande jogo de dia 24 (sábado).
Menos mal ou tanto pior. Sei agora que até um campo de futebol improvisado se instalou no local e que a brincadeira futebolística irá trazer uma receita de muitos milhões, que não chegarão para tapar os buracos orçamentais do país. Iriam ser precisas muitas bolas destas.
Acerca da outra 'festa' - a das eleições - já tem foliões a foliar o país que por estes dias é para eles o habitual circo. A pantomina ainda engana alguns (ou muitos) a quem as urnas os esperam, como uma morte eleitoral anunciada à partida: seja qual for o resultado, quem ganha não serão os eleitores, embora isso nos queiram fazer crer. E como temos de crer em alguma coisa...
A propósito, mas por mero acaso, numa destas noites esbarrei com as páginas de sociologia política, escritas por Fernando Pessoa. Há algum tempo que a obra se encontra na minha biblioteca, mas ainda não a tinha folheado.
Dizia o pensador-filósofo-sociólogo, mais conhecido por ser o poeta fingidor das múltiplas máscaras, que 

"Votar é errar.O voto é individual e a essência da opinião é não ser suscetível de fracionamento em indivíduos. A opinião pública é um ente, de que os indivíduos que sem querer a compõem são células. A opinião pública não é uma soma nem mesmo uma síntese, é um facto pré-intelectual.Concluir-se-á imediatamente: se a opinião pública é só uma atmosfera e não uma corrente, se é um estado de alma coletiva e não uma tendência para a ação, como hão-de os homens públicos governar com a opinião pública? Como hão-de saber o que ela é, se a essência dela própria é não saber bem o que é?O erro em uma objeção destas está no conceito democrático de governo. Se se julga que governar é seguir a opinião pública, não há resposta. Mas governar com a opinião pública não é segui-la: governar com a opinião pública é interpretá-la. A sociedade tem o seu esteio no instinto; o governo é um fenômeno intelectual. Ora a relação entre a inteligência e o instinto é interpretativa." 

Páginas de sociologia política, do sufrágio político e da opinião públicaFernando Pessoa, 1a. publ. in Revista Portuguesa, nº 23-24. Lisboa: 13-10-1923, p. 274-275.

Portanto, no próximo domingo, faça sol ou chuva, não se esqueça de exercer o seu dever cívico e vá errar.
Se preciso for, inspire ou inspire-se fundo em Pessoa, na prosa, na poesia ou nos pensamentos. Ou no seu Álvaro futurista, que há cerca de um século 'futuralizou' sobre Portugal e a Europa, num outro tempo mas que aos tempos de hoje se torna tão atual. Tente, como ele tentou, encontrar um futuro, um caminho ou um rumo. Para si ou para a Europa (se é que uma e outra não são a mesma coisa):
«Mandado de despejo aos mandarins da Europa! Fora.A Europa tem sede de que se crie, tem fome de Futuro!A Europa quer grandes Poetas, quer grandes Estadistas, quer grandes Generais!Quer o Político que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu povo!Quer o Poeta que busque a Imortalidade ardentemente, e não se importe com a fama, que é para as actrizes e para os produtos farmacêuticos!Quer o General que combata pelo Triunfo Construtivo, não pela vitória em que apenas se derrotam os outros!A Europa quer muito destes Políticos, muitos destes Poetas, muitos destes Generais!A Europa quer a Grande Ideia que esteja por dentro destes Homens Fortes — a ideia que seja o Nome da sua riqueza anónima!A Europa quer a Inteligência Nova que seja a Forma da sua Mateira caótica!Quer a Vontade Nova que faça um Edifício com as pedras-ao-acaso do que é hoje a Vida!Quer a sensibilidade Nova que reúna de dentro os egoísmos dos lacaios da Hora!A Europa quer Donos! O Mundo quer a Europa!A Europa está farta de não existir ainda ! Está farta de ser apenas o arrabalde de si-própria! A Era das Máquinas procura, tacteando, a vinda da Grande Humanidade!A Europa anseia, ao menos, por Teóricos de O-que-será, por Cantores-Videntes do seu Futuro!Dai Homeros à Era das Máquinas, ó Destinos científicos! Dai Miltons à época das Coisas Eléctricas, ó Deuses interiores à Matéria!Dai-nos Possuidores de si-próprios, Fortes Completos, Harmónicos Subtis!A Europa quer passar de designação geográfica a pessoa civilizada !O que aí está a apodrecer a Vida, quando muito é estrume para o Futuro!O que aí está não pode durar, porque não é nada!Eu, da Raça dos Navegadores, afirmo que não pode durar!Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!Quem há na Europa que ao menos suspeite de que lado fica o Novo Mundo agora a descobrir?Quem sabe estar em um Sagres qualquer?Eu, ao menos, sou uma grande Ânsia, do tamanho exacto do Possível!Eu, ao menos sou da estatura da Ambição Imperfeita, mas da Ambição para Senhores, não para escravos!Ergo-me ante o sol que desce, e a sombra do meu Desprezo anoitece em vós!Eu, ao menos, sou bastante para indicar o Caminho!Vou indicar o caminho!»
Ultimatum (1917), de Álvaro de Campos (F. Pessoa)
Portugal Futurista, nº 1. Lisboa: 1917


"Entre as várias superstições verbais, de que se compõe a pseudônimo-inteligência da nossa época, a mais vulgarmente citada é a da opinião pública." 





domingo, 18 de maio de 2014

Memórias #3 - Quatro à pendura


Esta memória eu não recordo muito bem, mas diz que quando eu era pequeno o meu pai tinha uma mota e que nela viajávamos os quatro: pai, mãe, eu e a mana, mais pequenina do que eu. 
Quem é que disse não ser possível colocar o Rossio na rua da Betesga? Então se era possível viajarem dois adultos e duas criança num motociclo! Aliás, a família sempre foi dada a estes curiosas viagens. Bem mais tarde chegamos a viajar os quatro com mais uns tios e um primo num Mini! 
A necessidade aguçava mesmo o engenho, principalmente quando os engenhos não tinham o tamanho mais adequado, neste caso aos agregados ou às aventuras familiares. 
Agora, já adulto, o meu pai tem uma (outra) mota.  Não será tão especial como a mota em que a família chegou a andar toda de uma vez, mas terá a magia que tiveram todos os velocípedes que o meu pai teve. Cada uma à sua maneira. O mais importante é que o meu pai e a sua principal pendura - a minha mãe - agora, como nos tempos de namoro, ainda em Angola, continuam a ser os principais companheiros. Seja em que meio de transporte for. São estas, as últimas memórias, que fazem mais sentido à vida que ainda se vive. Como o reduzido espaço numa lambreta ou num t0, há sempre espaço para mais uma!

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Auto para um pastel de Belém


Sou um objecto real, quase a tocar o surrealismo. Sonhar, diz-se que é normal, mas os meus desejos são puro futurismo

PERSONAGENS: Futurismo | Realismo Chamado Neo | Naturalismo | (meio) Surrealismo | Manifesto | Performer que também é Polícia

ACTO I (e único)

Cena 1 (também filha única)

O pano está descido. A cena podia passar-se num café do Chiado, mas encontramo-la numa esplanada para os lados de Belém. Os personagens são actores de uma peça de teatro que está prestes a começar e que não teve ensaios: nasce do improviso. Estão sentados à mesa o Futurismo, o Naturalismo e o Realismo. Discutem animadamente a novela das 8 do dia anterior.

NATURALISMO – Eu sou a Personagem! (Entra o Manifesto).

MANIFESTO – (saca de um dedo) – PUM! - (O Naturalismo cai no chão. Entra o Polícia, que também é Performer).

POLÍCIA, QUE TAMBÉM É PERFORMER – O que é que se passa aqui?

REALISMO CHAMADO NEO – Foi o Manifesto que se manifestou com uma bazuca de três letras, disparatando contra o Naturalismo!

(MEIO) SURREALISMO – E o Naturalismo caiu inanimado no chão.

REALISMO CHAMADO NEO – Naturalmente. Ainda bem que não o confundiram comigo. É muito comum...

FUTURISMO – Com rigor, devo dizer, era o destino. Isso é que é uma realidade.

REALISMO CHAMADO NEO – Eu sou a Personagem e sou Eu!

POLÍCIA, QUE TAMBÉM É PERFORMER – (para o Manifesto) Mas você não sabe que as letras de bazuca são proíbidas? Quero que vá imediatamente comprar uma caixa de pasteis aqui prá malta. E numa caixa azul!

(MEIO) SURREALISMO – (chamando o empregado) É a conta, fáxavori.

(sobe o pano)
FIM


«Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna.»  
Mário Cesariny

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Memórias #2 - Beijos ternos de um barba rija



Do meu avô materno não guardo muitas memórias fotográficas, mas as que tenho estão gravadas no coração. 
Além das poucas fotografias, dele guardo a harmónica que me ofereceu quando eu era criança. Não sei tocar, mas finjo concertos com ela, apenas para ouvir o seu som único, que me lembra as suas calorosas receções de braços abertos sempre que o visitava na 'terra' dos avós. Uma festa para toda a gente. As festas que ele me fazia eram acompanhados de beijos que picavam, por causa da sua barba curta e rija, mas que não magoava. Pelo contrário: era terna como o carinho que ia guardando até à nossa chegada.
Afinal nem todos os beijos ternos emanam amor, nem todos os beijos rijos têm ausência dele.
Afinal a vida também são uma série de desafinações muito bem alinhadinhas umas a seguir as outras. São elas que fazem música para os meus sentidos e que dão sentido às minhas lembranças. 
Não seria tão bom que toda a gente estivesse 'ali' até ao fim dos nossos dias?
Ao menos vivem em nós.

Já escrevia Cazuza:

Eu hoje tive um pesadelo
E levantei atento, a tempo
Eu acordei com medo
E procurei no escuro
Alguém com o seu carinho
E lembrei de um tempo

Porque o passado me traz uma lembrança
Do tempo que eu era criança
E o medo era motivo de choro
Desculpa pra um abraço ou um consolo

Hoje eu acordei com medo
Mas não chorei, nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via o infinito
Sem presente, passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim
E que não tem fim

De repente, a gente vê que perdeu
Ou está perdendo alguma coisa
Morna e ingênua que vai ficando no caminho
Que é escuro e frio, mas também bonito porque é iluminado

Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás"

Poema, Cazuza
A versão cantada de Ney Matogrosso aqui.



sábado, 10 de maio de 2014

Memórias #1 - Viagem à infância de bicicleta


É capaz de haver uma idade mínima para se ter as primeiras memórias. Estudos sobre natalidade referem que as primeiras ocorrem ainda durante a gestação, e que já mais crescidas as pessoas recordam o que aconteceu enquanto ainda estávamos na barriga da nossa mãe: sons e sabores; o que a mãe ouviu ou o que a mãe ingeriu terão influência na música ou na comida de que gostamos. Mas...
"As memórias de quando éramos bebés podem ter sido "limpas" com o nascimento de novas células cerebrais."
Porque é que os mais pequenos não conseguem recordar determinadas situações e eventos?
"Estas memórias, como o que comeu ao jantar, por exemplo, envolvem o hipocampo, que abriga uma "fábrica de células", produzindo novos neurónios, que os cientistas acreditam ter um papel nas recordações. A produção vai abrandando, no entanto, ao longo da infância, coincidindo com a formação de memórias de longo prazo."
O que eu sei é as minhas memórias andam para trás apenas até à minha tenra (tenrríssima) idade de 4-5 anos. A que lembro como uma das primeiras é a dos passeios com o meu avô paterno na sua bicicleta, onde colocou uma espécie de caixa improvisada que me proporcionava uma bela viagem de pendura.
"Talvez esquecer não seja uma coisa má. Talvez seja bom limpar algumas recordações e esquecer algumas coisas que não são muito importantes." Mas apenas essas. As boas, é bom que nós lembremos delas.

Schopenhauer dizia que "Lembramo-nos melhor dos primeiros anos de vida do que dos subsequentes. Quanto mais vivemos, tanto menos os acontecimentos nos parecem importantes, ou suficientemente significativos para serem depois ruminados; todavia, este é o único meio para fixá-los na memória, caso contrário, serão esquecidos logo que passarem."

Apoio à inspiração deste post:

Memórias #0 - Do fim para o início e ao contrário


Nos últimos dias tenho refletido muito sobre a vida, por causa das pedras e das perdas que ela nos reserva. O que me inspirou a pensar escrever uma série de posts reservados a memórias. Já são muitas, mas espero que não tantas quantas as que ainda aí vêm.
Este post foi pensado sobretudo no último dia do mês de abril, quando muitas pessoas, longe e perto, dissemos adeus a uma pessoa que nos foi, ainda é e será para sempre muito querida. Essa pessoa é meu inesquecível tio, que se junta a outras pessoas da minha família, igualmente queridas e de quem sinto a falta física.
Propositadamente aguardei pelo primeiro dia do mês seguinte, do maio que se faz por estes dias soalheiro e que convida à celebração da vida, para escrever as palavras refletidas e que refletem a minha saudade. Não me considero uma pessoa particularmente saudosa de tempos passados. Estou de olhos, de corpo e em sentido a aguardar um risonho futuro. Mas não consigo deixar de olhar para momentos vividos, queridos, sorridos, com muita alma.
Nesta série, que será propositadamente intermitente, não vou contar a minha história de vida, mas a vida que têm muitas das minhas histórias. Não começa do princípio nem do fim, será como as marés, incertas como o pensamento, para trás, para a frente e inversamente. 


Saudade é solidão acompanhada, 
é quando o amor ainda não foi embora, 
mas o amado já... 

Saudade é amar um passado que ainda não passou, 
é recusar um presente que nos machuca, 
é não ver o futuro que nos convida...

Saudade é sentir que existe o que não existe mais... 

Saudade é o inferno dos que perderam, 
é a dor dos que ficaram para trás, 
é o gosto de morte na boca dos que continuam... 

Só uma pessoa no mundo deseja sentir saudade: 
aquela que nunca amou. 

E esse é o maior dos sofrimentos: 
não ter por quem sentir saudades, 
passar pela vida e não viver. 

O maior dos sofrimentos é nunca ter sofrido."

Saudade, Pablo Neruda

terça-feira, 6 de maio de 2014

Saídas limpas com salários kinder




A saída limpa do resgate é o tema do dia. Isso e o facto do Benfica estar a ganhar jogos a torto e a direito. O que não sei se para os benfiquistas é uma coisa boa, já que com tanta festa até parece que nunca ganham nada. Não sei se sim nem se não: não me meto em políticas. 
Quanto à saída limpa, troikas e outras cenas do género, não sei o que é que isso quer dizer, apesar de todas as tentativas de esclarecimento que acompanham estes temas, com os habituais comentadores mediáticos e de bancada. Não é que não queira saber! Bem... querer, querer, também não quero. Mas tento pelo menos entender. Este assunto, como outros do género BPPs, BPNs e ilibações de fraudes milionárias (ou bilionárias), parecem-se com aquelas galinhas e maçãs podres: cada cavadela cada minhoca. Mas entre minhocas e outros vermes, quem habitualmente se lixa é o molusco. 

Com tantas promessas curtas e irrevogáveis decisões com síndrome da Dóris (ver Finding Nemo), o que eu gostava de entender é o que é que quer dizer uma "saída limpa". Qual é o detergente milagroso que vai deixar isto tão branco, que não haja forma de enganar o algodão? Terão estado as coisas alguma vez realmente cândidas? Ou terão estado os anos de candura camuflados com uma falsa realidade que iludiu as nossas vidas com a riqueza que nunca tivemos?
Seja como for, se é justo que paguemos todos, sê-lo-ía de facto se o pagamento fosse feito pela mesma medida de quem mais culpas teve no cartório (todos nós, mas uns mais do que outros). E não tanto a classe média, que há muito perdeu a classe e que caminha a passos largos para a mediocridade. 
O que é preciso é ter fé que um dia destes os impostos não subam mais do que o poder de compra das pessoas, esperar que os salários deixem de ser todos os meses uma surpresa conspurcada das chafurdisses alheias e que um dia as pessoas deixem de viver tão ansiosas. Com muita sorte e depois de tanto sacrifício, talvez um dia voltem a ter um brinquedo saído do vencimento desse mês que dê para brincar mais do que apenas contar tostões para comprar pão e leite. 

"Garçom, faça as contase diga-me quanto devo.
Ah, o que consumi?Amor, café, mágoas, lágrimas, solidão e um doce.
- O senhor só me deve uma vida e dez centavos."

Custo de vida, Poeta anónimo, Brasil, anos 70 (ditadura militar)

Créditos da imagem: 
Sunlight Liquid Detergent: Pig  / Advertising Agency: Lowe, Bangkok, Thailand / Creative Directors: Ricardo Turcios, Ruchi Sharma / Copywriters: Ej Galang, Sarah Ko, Gabriele Espaldon / Art Director: Katrina Encanto / Photographer: Surachai Puthikulangkura / Illustrators: Surachai Puthikulangkura, Supachai U-Rairat

sábado, 3 de maio de 2014

Mãe mãe Maria


Ter mãe, inevitavelmente, todos temos ou tivemos. Ser mãe é que já é uma condição que nem toda a gente pode ter. Ou não tem a habilitação para o ser.
Este é um post sobre o Amor de progenitora ou de criadora.
Há mães para todos os gostos. Das que se limitam a procriar às que fazem da gestação e da geração de uma vida uma missão de vida.

Há aquelas que nasceram para ser mães e são. Há aquelas que pensavam ser e não são. Há aquelas que nunca sonharam ser e surpreendentemente o são. Há aquelas que não pensaram nem querem ser e por isso não são. Seja por decisão ou por condição, ser mãe é muito diferente de querer sê-lo. 
Depois há também a posição de se ser filho ou filha. Essa temos todos. Também os há de todos os tamanhos e feitios. Também aqui ser filho pode ser uma posição naturalmente simples ou condicionalmente complicada. Seja qual for o caso, serão sempre filhos de uma mãe, podendo eventualmente, se se tiver alguma sorte (ou azar, para os mais pessimistas) ter mais do que uma. O mesmo se passará com os pais. Mas sobre esses se reservará o dia apropriado, noutro mês que não este.

A julgar pelos relatos que já ouvi da maior parte dos progenitores e pais, é uma das melhores sensações que uma pessoa tem na vida. Acredito que sim. O que chateia é quando essas pessoas esfregam descaradamente a sua (muitas vezes aparente) felicidade na cara das outras que por opção ou impossibilidade não conseguem ou não podem ter filhos. Sei que se trata de uma pressão já impregnada na sociedade. Mas da mesma forma que o casamento tem caído cada vez mais em desuso, também ser pai ou mãe o tem sido. Uma crise também ajuda a que a natalidade veja as suas taxas diminuir. Pior do que isso é querer ter filhos pelas regalias fiscais que isso possa trazer a um agregado. Pior ainda: quando se os tem (aos filhos) e não se tem as condições para os ter. Sobretudo o amor e o carinho necessários. Devia mesmo haver um teste, do género 'filhígrafo', que pusesse à prova as competências dos candidatos a pais antes de se levar avante o ato da procriação. Uma espécie de procura de Fator P (de pais). Da mesma forma que quem quer adotar tem de provar uma série de coisas antes de o poder fazer. É um mérito muito grande, de quem tem a coragem de o fazer. 
Mas este é o mês da minha Maria. Os restantes são os da minha mãe. Por acaso, e por muita felicidade minha, a minha Maria é também a minha mãe.
Afinal mãe não há só uma. 
A minha é e sempre será a única.
"Bendita seja a Mãe que te gerou.Bendito o leite que te fez crescer Bendito o berço aonde te embalou A tua ama, pra te adormecer! 
Bendita essa canção que acalentou Da tua vida o doce alvorecer ... Bendita seja a Lua, que inundou De luz, a Terra, só para te ver ... 
Benditos sejam todos que te amarem, As que em volta de ti ajoelharem Numa grande paixão fervente e louca! 
E se mais que eu, um dia, te quiser Alguém, bendita seja essa Mulher, Bendito seja o beijo dessa boca!!
Florbela Espanca, in "Livro de Mágoas"