terça-feira, 30 de setembro de 2014

Ena pá, 2014! 30 a nus de carreira


No ano em que a banda de rock portuguesa (claro) Ena Pá 2000 comemora 30 anos de carreira, eu quero comemorar um álbum És muita linda que faz 20. Em 1994 o cd marcaria um período inesquecível da minha vida e, presumo, o de muitos dos atuais trintões e quarentões portugueses. É por muitos considerado o mais popular da banda, conhecida pelas letras carregadas de humor brejeiro e pornográfico. Logo, polémico, como a banda gosta de ser. É o que se podia esperar de um grupo cujos elementos têm alcunhas como Francis Ferrugem/ Rei ou Ray Bonga (o percurssionista Francisco Ferro, rei das Congas), Zé Líquido Rato (o baterista Luís Desirat), Pepe Mijo/ Pepito Furex (Pedro Rijo, nome verdadeiro), Manuel Anão/ Escaravelho da Foz do Arelho (o Baixo Manuel Duarte), Juanito Porkys Del Mar/ Joni Pórkinho/ Pão Diospiro (o guitarra João Santos) ou Lello Marmelo/ Orgasmo Carlos, líder e vocalista-artista-ativista-político Manuel João Vieira, que mantém a irreverência e polémica, mesmo a solo, na vida (ir)real.

O cd foi-me oferecido pela minha namorada da altura. Nunca os esqueci: nem a ela nem ao cd, que de quando em vez insiro na grafonola digital para recordar as músicas. 

- Isso é lá coisa que uma miúda compre e ofereça ao namorado?  - podem alguns pensar, admirados.

A admiração, contudo, não deve ser essa (nem outra que o meu estimado leitor possa vir a ter). Depois de ultrapassado o choque da também polémica capa do cd (que reproduzo abaixo, para quem não conhece, e acima, a ilustrar este post, mas com muito mais censura), começa o encanto do seu interior musical, que teve participações dos alentejaníssimos Vitorino e Janita Salomé, do Gimba, do João Paulo Feliciano e do Bernardo Sassetti. Ao longo das 20 faixas sucedem-se cacofonias de fazer corar um Quim Barreiros, ou qualquer outro cantor pimba que nem no século XXI se atreveria a reproduzir num dos seus espetáculos, muito menos numa daquelas exaustivas mas muito populares maratonas de programas de televisão de fim de semana. 

Os títulos dos temas vão dos mais simples e cândidos (só nos títulos) aos mais hard. Rock com uma pitada - ou muita pitada, pronto, admito - de XXX. Quanto baste para apimentar a coisa e sem outros pis castradores: aqui os coitus musicais só são interrompidos com as gargalhadas que inevitavelmente provocam aos que o ouvem com atenção. Segue a minha proposta/ guia para a audição de cada uma das faixas, uma tentativa para atenuar - castrar - as palavras e o sentido que no original poderão encontrar (qualquer pesquisa na net os encontram).  Aviso que os títulos não são de minha autoria e podem ferir os ouvidos menos liberais ou insensíveis.

1. Alice - O vocalista pede ao longo da música a uma senhora ou menina, que se chama Alice, que lhe lamba uma certa coisa, que nunca percebi exatamente o que é mas que rima com o seu nome. E recomenda-nos, a nós e a todos os que pensam acabar com a própria vida, a experimentar essa magia de amar que a Alice tem. Só sei que desde que ouvi este tema, nunca mais consegui encarar da mesma maneira alguém que se chamasse Alice. Fica no ouvido. Provavelmente há muito bom homem que ainda hoje procura por ela. 

2. Dona - Não sei se se refere à Dona Alice, da música anterior. Um arroto discreto abre o tema da senhora que ama quer analfabetos quer doutores. Um amor democrático, portanto, com um quintalinho acolhedor cor-de-rosa em botão, a mais linda flor de uma música em que não falta uma breve passagem pelas notas musicais que fazem lembrar um circo.

3. Vida de Cão - É uma espécie de diário de um homem a quem comparam com um canito, com direito a pulgas e tudo. Uma vida difícil que só os prazeres de uma meretriz, visitada religiosamente ao domingo, numa qualquer pensão, pode apaziguar. Tudo regado com um som rockalhado que acaba com os acordes da música "Quando o coração chora de amor" no momento em que o desafortunado homem protagonista é esmagado por um camião.

4. Nunca 1 - A balada do álbum que é uma declaração de amor carregada bolas de sabão e de sátira. O autor enamorado afirma que nunca deixará de sentir ponta por ela, de ter o seu zé levantado por ela, terminando o tema com um suspiro chorado. Provavelmente a história não fica por aqui.

5. LSD 25 - Não gosto particularmente deste tema. É sobre o que se vê ou sente quando se consome uma qualquer inebriante substância (tipo crocodilos de cristal, lulas verdes extravagantes, ovos de Aveiro, serpentinas ondulantes e outras cenas do género).

6. Nunca 2 - E a história não se ficou por ali. Repete-se neste tema, sobretudo o refrão. Distingue-o apenas as rotações ora lentas ou rápidas e um final riscado. Dos meus preferidos!

7. Semi-Tango - Neste tango entram a dançar várias personagens. Há um homem que tenta cortar uma vaca com uma faca torta. Há uma costureira e uma velhota que gostam de apanhar bebedeiras à meia noite numa... banheira (uma vez mais aqui o nonsense, apenas para rimar a palavra  com aquela profissão). Parece-me que são vizinhas do tal homem, a quem às tantas numa noite de chuva lhe apetece comer frango assado e a quem um coração cantante lhe faz ter instintos de estripador. Mas aquela vaca já estava morta. É nós dançamos, divertidos, este tango que é tão semi como senil.

8. Masturbação - Este canto é gregoriano e apresentado, com orgulho, por uma voz que bale. A letra é muito complicada: resume-se a um conselho para que se pratique este ato de auto-prazer para bem da nação. 

9. Bacamarte - Este é o tema mais vaidoso do álbum. O seu personagem gaba-se o tempo todo do tamanho do seu grande órgão genital, dedicando-lhe o título da música: bacamarte. Mas também lhe chama linguiça, pilinha (só para dizer que é tão grande que vai da costa à linha) e linguiça. Até onde vai a imaginação hard-core

10. Rap Alentejano - É nesta música que o Vitorino e o Janita cantam e fazem coro. O protagonista é o General Zé que se vem manifestar em rap por uma grandessíssima atitudi. Muuuuuita a-a-a-a-titudi.



11. Paneleiro - O início deste tema lembra-me um filme do Tarantino. Como noutros tema, o nonsense reina, com palavras colocadas apenas para rimar com o título e outros estereótipos associados aos homens que têm essa preferência sexual: gostam de chupar no gelado, têm um corpo musculado, assopram nas camisas (?), puxam o lustro aos para-brisas (??). Mas, sobretudo, são uma espécie muito limpa: tomam muitos duches no chuveiro (rima) e lavam muito bem a região pudibunda com... OMO. Por isso são Omossexuais! O filme está feito. Genial.


12. Marisco - O mais tropical e delicioso tema. Afinal, há muito pouca gente que não gosta de marisco, não é? Afirma o cantor que "Agorra nos práia di Porrtugal já não há marrisco igual àqueli di antigamenti". É preciso ter atenção porque a iguaria é boa mas pode causar intoxicação. A música também causa um bocadinho

13. Fim-De-Semana Em Vizela - Deve ter sido um fim de semana prolongado, com feriado pelo meio. É que não só foi passado em Vizela, como 'entram' o Fernando Mamede, a mulher do Vitor Espadinha, a filha da Teresa Braganza, a neta do Bispo de Beja, a secretária do Taveira, a tia-avó do Júlio Isidro, a criada do Salazar, o Macário Correia, a amiga do Santana Lopes, o major Valentim Loureiro e a sogra do Mário Soares. Isto é que foi um forrobodó, heim! Com muita rima à mistura.

14. Puta - Ela tem a profissão mais velha do planuta, o seu coração palputa pelas pedras da calçuta, faz com que o suor dele caia em cascuta e dá-lhe um nó na pixuta, pra ver se ele aprende. Lindo!

15. Fucking Time - Não gosto desta, por isso não a comento.

16. Carla Andreia - Outra música dedicada a outra moçoila. Aliás, quase todas andam à volta das fêmeas que inspiram a banda. A Carla Andreia, de olhos azuis, não é exceção. 

17. ABC Do Amor - Outra balada, outra volta no carrocel do amor e da beleza feminina que, uma vez mais, celebram a cantar. Tanto, que acabou por inspirar o nome do álbum. É que a chavala é mesmo buéda, buéda linda, fixe e maravilhosamente porreira, pá! O tema tem duas partes. A segunda tem mais batida.

18. Alcina - É claro que é assassina e senhora da sua vagina. Que outras palavras se conseguiam encontrar para rimar com o seu nome?

19. Perversa Adolescente - Embora pequena em estatura (anã de não mais de metro e meio) dá tanta pica que faz levantar a... pedra da calçada. Seus malandrecos! A segunda parte da música é mais infantil no tom: tem um ursinho que gostava de comer mel, até o ter enjoado, procurando, então, ajuda divina. Mudou os hábitos alimentares para o seu manjar. Oh, tãooooo querido!

20. A Titi Fez Um Tété - O popó que o papá deu, o teté que a titi fez com óleo Fula, o xixi que o bebé fez e o cocó que fez o avô. Não é bom brincar com as palavras? São uns brincalhões, estes gajos! 

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Quanto a ser o mais popular álbum da banda, a Wikipédia nota que a afirmação carece de fontes. No entanto esta fonte (eu) confirma-o. De que mais fontes precisaria eu?


Crédito de imagens: capa do cd És Muita Linda, Ena Pá 2000 (1994); 
Les Bas Blancs (Mulher Com Meias Brancas), Gustave Courbet (c. 1861)


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domingo, 28 de setembro de 2014

Movifostes ou Movi-à-flor-da-pele


Mostrem-me um português da classe média ou baixa que nunca tenha feito uma compra na Moviflor, e eu mostrarei o meu espanto e a minha incredibilidade. Durante anos foi a Meca de quem procurava aquela estante, aquele móvel, aquele sofá, aquela cama com mesinhas, guarda roupa e cómoda a condizer, aquela mesa de escritório com a respetiva cadeira, aquele abajur, candeeiro, cortina, tapete ou qualquer acessório para a casa. Ainda me lembro dos tempos em que a única loja (se não a única, uma das poucas) era a concorrida e publicitada do Largo da Graça, em Lisboa. Há uns tempos que lá não vou, mas lembro-me que uma das últimas vezes não só não encontrei o que procurava (que não lembro o que era), mas fiquei deprimido por já não ser o que outrora fora. Além de me parecer, esta loja em particular, muito pequena. Mas isso foi porque inevitavelmente a comparei com outra da cadeia, gigantesco centro comercial do móvel na Margem Sul (em Corroios), com três enormes pisos. 

Foi lá que comprei o sofá e o tapete da sala para a minha primeira casa, em Lisboa. Antes disso, claro que em casa dos meus pais qualquer nova necessidade deste tipo de mobiliário era a ela que recorria. Também para a primeira casa que comprei foi lá que encontrei algumas peças. 
Entretanto chegou a Portugal um novo conceito (estrangeiro) de mobiliário (design sueco, dizem) a preços acessíveis à maioria dos portugueses, num enorme espaço comercial onde eles passaram a fazer as suas compras, maravilhados com as novas possibilidades de arrumação, organização e decoração para a casa, com muitas soluções para casas com divisões de tamanhos modestos. Claro que o grosso catálogo desta marca, que todos os anos aparece na caixa de correio de quase todos os portugueses, passou a ser a bíblia de mobiliário de muitos. 
Os móveis da Moviflor passaram a estar muito datados e fora de moda, apesar dos esforços. Não valia a pena concorrer: os portugueses estavam determinados a passar dias inteiros a percorrer os imensos metros - dizer quilómetros não seria exagerar - dos labirínticos corredores da outra loja, que oferece menus de pequeno almoço e de almoço a preços também acessíveis, que convidam a ficar ainda mais tempo. A estratégia parece funcionar. O restaurante e a loja está sempre cheio ao fim de semana. Sei porque também me rendi, durante uns tempos, ao design e conceito simples, embora as almôndegas de carne não me atraiam particularmente.


Não admira, por isso, que a Moviflor tenha vindo, nos últimos anos, a sentir o abalo na faturação. Apesar das tentativas de recuperação, com novos investimentos para a tentar salvar, a cadeia não está a sobreviver saudavelmente. Já não consegue pagar a tempo e devidamente aos empregados e as últimas notícias dão conta que irão fechar as lojas já a partir do dia 1 de outubro. 
Nas reportagens dos vários canais de televisão, à hora de almoço ou de jantar, os empregados queixam-se dos atrasos nos vencimentos. Os portugueses, como eu, têm pena da situação e comentam a tristeza que é, ao que o país chegou, e vai lembrar-se disso sempre que olhar para aquele móvel comprado lá a prestações, aqui há tempos.

Mas para afogar as mágoas, e já que é domingo e está a chover e tudo, que tal irmos à tal loja que até vende umas bolachas suecas de gengibre e pimenta, muito boas e estaladiças, e se aproveita para comprar aquele móvel, jeitoso pró quarto dos miúdos, com arrumação engenhosa e que vem numa embalagem plana que até cabe na bagageira?

A economia, em Portugal, agradece. Afinal, sempre se está a dar emprego a (outros) portugueses (e parece que as peças, apesar de design sueco, são construídas em Portugal). Pelo menos até ver...

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quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Duas moedas, duas faces



Já tenho alguma experiência laboral para conhecer algumas das faces das várias moedas que uma instituição, pública ou privada, podem ter. 
É conhecida a apetência por se pertencer às primeiras, embora seja nas segundas que se pode ganhar mais. Principalmente pela solidez que a primeira apresenta. Já apresentou mais, verdade seja dita, por não se conseguir entrar na primeira, haver uma maior garantia de se lá permanecer muitos e muitos e bons anos. Embora a situação atual obrigue a que seja muito mais (cada vez mais) difícil lá entrar (tirando as tachadas ou tachativas exceções). Nunca as pessoas que entraram para um emprego estatal pensavam que sair podia acontecer. Bom, apesar de todos os despedimentos da administração pública - a maior parte, digo eu, convites para uma aposentação antecipada - ainda não é assim tão fácil.
Conheço esta e a outra realidade (a privada) por dentro: ou por experiência própria, ou por via de outrém.

Há casos e desabafos que me deixam tão perplexo e indignado, que me custa ainda mais a acomodação à situação. Nalguns não posso fazer nada, noutros nada posso fazer, a não ser dar-lhes guarida e alento com a minha atenção e apoio

Quem não conhece alguém que se acomodou tanto à empresa, que faz questão de se considerar  património dela? Essa pessoa está lá tão incrustada, que contra a sua incompetência já não se pode fazer nada para que ela seja dispensada. Nem lhe são atribuídas responsabilidades ou consequências por isso. É claro que não sou a favor da punição, mas há uma impunidade tão grande, que mete dó! E as instituições têm de lidar com esse problema, quase sem solução. Por isso existem trabalhadores que apenas estão empregados: relegados para um canto, por um qualquer (des)conhecido motivo, continuam a receber o seu ordenado sem que nada façam ou contribuam para o desenvolvimento da empresa ou instituição. É capaz de haver consciência destas situações por parte das instituições e direções responsáveis, mas nada fazem ou nada podem fazer. O que fazer? A questão deixa-se, retórica, no ar para uma resposta tão utópica quanto ela. Deixo para os diretores de recursos humanos, os entendidos, a procura para a solução.



Depois há a outra face, de uma outra moeda. A daquelas pessoas que têm de se sujeitar às regras do mercado de trabalho, com todas as fragilidades que o regem. Conheço, particularmente, vários casos, mas um deles serve-me aqui de exemplo. O de uma pessoa amiga, relativamente jovem (nos trintas e poucos) e com uma formação superior, na àrea da banca. Não está a conseguir vingar na área, portanto sujeitou-se a aceitar um emprego precário. Não pode faltar, quase não pode ir à casa de banho e almoçar só se for em poucos minutos, e só se. Já lhe aconteceu daquelas urgências fisiológicas que 'atacam' qualquer pessoa que esteja viva, e viu-se bem enrascada, pois não tem quem a substitua no local de trabalho e não pode fechar a porta do estaminé. A última que lhe aconteceu foi ter sido "obrigada" a trabalhar na folga, sem direito a qualquer compensação de tempo ou de valor /hora acima do horário normal. Como não conseguiram arranjar uma substituição, teve a consciência a pesar-lhe para não faltar ao compromisso que não tinha e a empresa - privada - desresponsabilizou-se de uma responsabilidade que é sua, em última instância. Mas ela não faltou.

Marco falta à empresa desta pessoa, mas não de material: de humanidade.
Se eu fizer queixa à guarda, será que lhe vai acontecer o mesmo que a outras vítimas, de outros crimes e injustiças?

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segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Teatro figurado



Um dia destes fui aos teatros. Assim mesmo, no plural, num espaço que é muito singular: o Teatro Municipal Joaquim Benite ('antigo' Teatro Municipal de Almada, que passou em 2013 a ter o nome do homem que o fundou, juntamente com a Companhia de Teatro de Almada). 
Fui ao edifício azul para assistir a Faz Escuro Nos Olhos, uma criação coletiva da Griot - Associação Cultural (Lisboa), com encenação de Rogério de Carvalho na Sala Experimental.
Antes da peça entrei no teatro-edifício e decidi, juntamente com a minha companhia de sempre, jantar no maravilhoso teatro-restaurante que fica no segundo piso. A refeição foi precedida de uma visita à Galeria onde se encontra a exposição-teatro Transfigurações, do cantor, ator e artista plástico Manuel João Vieira.

Entrei no espaço sem reparar (como faço muitas vezes) no nome do artista ou no título. Foi-nos, entretanto, entregue um folheto com a informação explicativa que nos esclarece que a exposição 
"além de confrontar a pintura com a imagem fotográfica, utiliza a primeira como lugar da segunda, como contexto da segunda. As composições referem-se a construções teatrais e ao jogo do palco/moldura, cenografia e actores, sendo estes últimos apresentados como projecções diáfanas. As pinturas são transfiguradas pelas projecções sucessivas, perdendo o seu carácter material no jogo de sombras e luzes. Uma espécie de cruzamento entre um pequeno teatro de bolso e o kinetoscópio. Este exercício aborda desta forma bidimensional os dispositivos cénicos que são criados para mostrar imagens narrativas."
Manuel João Vieira, cantor, actor e artista plástico



Foi uma boa surpresa essa viagem a um mundo de pinturas em forma de tiras de banda desenhada a preto e branco a que não faltavam as cores com que a nossa imaginação as pintava. Quando entramos na sala encontramos, de frente, um tríptico em forma de teatro com um cenário muito colorido onde se projeta, disfarçadamente, uma imagem sem movimento com uma bailarina clássica a dançar. Em cada uma das duas paredes laterais dois painéis retangulares longitudinais, um em frente ao outro. Ambos com cenas aos quadradinhos não convencionais, um deles em papel de cenário, outro suporte nada convencional. 

Não têm legendas mas eu não preciso delas para dar início às histórias que os traços firmes e bem desenhados me sugerem e fazem imaginar, ora remetendo-me para o reino das maravilhas de Alice ora para surrealidades nas quais imagino um Tim Burton a realizar. E nós somos mais uma das suas fantásticas personagens. Saciado destas emoções plásticas, ficou aberto o apetite para a deliciosa refeição que se seguiu.

Quem quiser visitar ainda tem até ao próximo dia 5 de outubro. Pode aproveitar-se para um jantar com menus muito acessíveis no intimista restaurante com música ambiente e onde podem casualmente encontrar, quem sabe, alguns dos atores (como nos aconteceu). Um dos menus inclui o bilhete do espetáculo. Podem aproveitar ver na Sala Principal, por exemplo:

A peça teatral com produção da CTA, Negócio Fechado (de David Mendes, com adaptação e encenação do atual diretor do TMJB Rodrigo Francisco, com Paulo Mendes, de 25 a 28 de setembro);

O espetáculo de dança Todo Para Sempre É Agora (da Companhia de Dança de Almada, integrado na quinzena de dança da cidade, com coreografia de arriçado Ambrózio, no dia 3 de outubro às 21:30);

O concerto de Mafalda Arnauth (dia 4 de outubro às 21:30).

Mais informações na página do TMJB em www.ctalmada.pt.
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Transfigurações
05 JULHO a 05 OUTUBRO, 2014 | GALERIA DO TEATRO // TMJB (Almada)
Qui a Sáb das 19h00 às 21h00 | Dom das 15h00 às 19h30
M/6 Em dias de espectáculo a galeria está aberta até às 22h00

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sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Gurgulhus Humanus: 10 espécies de uma raça sem extinção


Esta é uma lista não exaustiva de coisas que não se devem fazer em público mas a que recorrentemente assisto no dia a dia, em diversas situações e locais. A maior parte delas nem em privado se deviam fazer. Algumas são mesmo ilegais, mas ninguém se preocupa com isso. Talvez porque não haja controlo nem fiscalização que as previna ou puna. Mas, sobretudo, porque não há civismo nem educação. Coisas... básicas?

Aqui vos deixo os tipos ou espécies de humanos que ainda se conseguem encontrar no nosso belo planeta, inesperadamente em qualquer situação pública. Gorgulhos da sociedade que batizei de Gurgulhus Humanus

TIPOS DE GURGULHUS 

1. Os Cheira-Sovacos. Ainda hoje presenciei este comportamento que uma fêmea (armada à senhora) teve numa estação fluvial enquanto aguardava o barco. O duplo gesto não foi feito disfarçadamente. Mas que culpa tem a senhora, ou os senhores seus pais que a educaram, se estava muito calor? Medidas drásticas são necessárias para situações extremas. Ainda se o sorver do nariz (vulgo cheirar) refrescasse ou anulasse os cheiros... Ou há uma nova estirpe de humanos com super-poderes que ainda não conheço? A generalizar-se, quem fica mal são as marcas de desodorizantes. Pois é, este tipo de humano - da família dos Espreguiça-os-Braços - nunca fica satisfeito com uma snifadela e sente a necessidade de ir mais além. Não apenas cheira um mas os seus dois sovacos. Afinal, eles vieram em número par por algum motivo, não?

2. Os Tira-Macacos. Esta podia ser a profissão daquelas pessoas que trabalham no jardim zoológico e que se dedicariam a tirar os amigos simeos da jaula. Não. Trata-se de um gesto mais corriqueiro do que se imagina. Esta espécie é muitas vezes avistada a tirar macacos do nariz sobretudo nas filas de trânsito, apesar de pensarem que os vidros dos seus veículos só permitem ver de dentro para fora. Pior mesmo, seria se transformassem este hábito numa colheita alimentar e inventassem uma nova iguaria: macacos ao chefe porco. E se esta moda culinária pega? Macacos me mordam! Bom, sempre era mais um programa na televisão para explorar. O Masterchef ou o The Taste que se cuidem.

3. Os Ajeita-Tintins. Devido à sua constituição anatómica, o gesto só se consegue encontrar nos machos da espécie. Quanto mais macho, mais se têm de ajeitar os 'saquinhos'. Não é que seja sinal de maior virilidade, mas o que é certo é que há fêmeas que lhes acham piada. Por isso continuam a reproduzir-se. Não é que tenham culpa. Afinal, nasceram com aquilo ali no meio das pernas e das duas uma: ou ajudam à locomoção (andando, por exemplo) ou saem do caminho. Como a primeira ainda não é uma opção validada pelos cientistas e a segunda não se consegue porque os ditos tin tins ainda não têm vida própria, lá terá que ser a mãozinha a dar... uma mãozinha! Então como fazer sem que o ato seja reprovável? A solução poderá ter surgido há uns anos, não pela mão da ciência mas do teatro, com uma dupla de comediantes - José Pedro Gomes e António Feio - na peça Conversa da Treta. Aí, um dos personagens - o Zezé, se a memória não me falha - assumia o comportamento e dizia que para o disfarçar, quando andava e precisava de o fazer aproveitava as curvas e a mudança de direção para levantar a perna contrária para os coçar ou ajeitar. Engenhoso e criativo, não?

4. Os Beata-pró-Chão. Em qualquer chão: no passeio, na estrada, na praia... As beatas de cigarro são uma praga. Elas são as 'caganitas' que alguns fumadores teimam em deixar no mundo. Será que pensam que elas desaparecem por si só ou têm esperança que se multipliquem na terra, multiplicando também a sua orgulhosa ponta? Esta espécie de Humanus não tem ponta de vergonha e não há ninguém que lhes pegue na ponta das orelhas e lhes dê um bom puxão, para ver se aprendem. O hábito está entranhado e a sujidade que este pequeno objeto deixa é inversamente proporcional ao seu tamanho. Quantas vezes na paragem do autocarro não só tenho de apanhar com o fumo daqueles que teimam em poluir o meu espaço aéreo - e consequentemente os meus pulmões - como tenho de assistir ao seu atiro ao alvo que nunca falha o chão. E o caixote do lixo ali tão perto! Tenho um vizinho que não fuma dentro de casa. Vai para a janela fazê-lo. Muito bem. Merecia um prémio pelo gesto, não fossem as beatas que teima em plantar no passeio do prédio. Já não leva o Óscar para o melhor vizinho do mundo. Nem para o de melhor ser humano. Será que o é?

5. Os Cospe-pró-Chão. Podiam ser uma banda rock-punk. Que eu saiba, não. São provavelmente primos não muito afastados dos Beata-pró-Chão e vêem-se cada vez menos. Estarão a extinguir-se? Avisem a Quercus. O seu comportamento pode observar-se sobretudo nos membros mais velhos da espécie. Muitas vezes - se não a maior parte das vezes - o ato (de cuspir para o chão) é imediatamente antecedido por um sorver nasal (vulgo 'escarrar') com que eles procuram potenciar ainda mais o ato de cuspir. Talvez quanto mais verde for, melhor. Ou, como dizia um amigo meu há uns anos, "Se tivesse casca era ovo."

6. Os Grita-ao-Telelé. Bem, eles não gritam, propriamente. Falam alto. Quem em público nunca teve em contacto com esta maravilhosa espécie de cordas vocais em perfeito estado de conservação? Há quase sempre um num metro ou num autocarro. Distinguem-se das outras pessoas por falarem muito alto quando recebem uma chamada telemóvica (através do telemóvel). Habitualmente são muitos os olhos que se viram na sua direção quando, depois de uma musiquinha (normalmente também com volume no máximo), atendem como que a assinalar a sua presença no meio de uma multidão, na rua, num transporte ou qualquer outro local público. O seu "Tou..." (variante "Tou sim") não costuma passar despercebido e a conversa pode ouvir-se por qualquer um à sua volta, num raio considerável de alguns metros. A sua intimidade exposta não costuma intimidá-los!

7. Os Música-no-Telelé. São com certeza da mesma família da espécie anterior mas estes em vez da sua própria voz, colocam a música que estão a ouvir no telemóvel tão alta que todos à sua volta, num raio suficiente para incomodar, mas que raio nenhum consegue partir. Eu pensei que os fones eram um objeto generalizado e que até costumam vir com a maior parte destes aparelhos. Terão perdido o livro de instruções ou a sua falta de instrução obriga a que chateiem toda a gente à sua volta? 

8. Os Boca-Aberta. Há aqueles que não conseguem deixar de a ter aberta para falar e os que a deixam aberta enquanto comem. Só não comem a mosca que podia entrar enquanto a têm tanto tempo aberta, mas nem o inseto cai na armadilha. Ele sabe que se entrar vai ter que ouvir. Mas pior mesmo é vermos o que as outras pessoas estão a mastigar, com todos os pormenores gráficos que elas fazem questão de mostrar. Em público ou em casa, deve fazer-se como nos ensinaram (a mim pelo menos): a comer de boquinha fechada. Não é irritante ouvir o crunch do almoço do vizinho do lado no restaurante? Pior mesmo, é este ato vir acompanhado de um sonoro arroto. Mas somos gregos, ou quê?

9. Os Língua-Suja. Não é bonito de se ouvir. Não fica bem a ninguém. Não está nem nunca esteve na moda. Os palavrões deviam ficar apenas com quem os praticam verbalmente. Devem evitar-se, sobretudo, ao pé de crianças. Recentemente presenciei uma mãe (suponho) com uma cria pela mão a subir uma calçada de Lisboa que àquela hora da manhã costumo descer, e essa senhora (eu sei, é um exagero, a criatura nem sequer tinha espécie definida, até eu a inventar aqui) ia a falar muito alto com uma outra que a acompanhava mais à frente (também com uma criança pela mão), vociferando uns palavrões hardcore no meio de um discurso que nada devia à mínima inteligência, mas que tudo deve à ignorância e, principalmente, à falta de educação. Sem tento na língua, nem sequer tenta disfarçar a falta de educação. A vítima, ainda sem o saber (algum dia o saberá?) será a criança, que muito provavelmente irá seguir o mesmo caminho descarrilado da linguagem inapropriada, transmitida pelos progenitores, num mau trato infanto-verbal que a lei não pune. Não será  caso para mandar lavar a boca com sabão?

10. Os Fura-Filas. Não devem ser confundidos com os furões, uma diferente espécie do reino animal, embora tenham adquirido os seus hábitos sem o saber. Distinguem-se deles por terem cérebro, apesar de não parecer. Os Fura-Filas são aqueles Humanus que comem muito. Comem tanto, que devem ter comido alguma família real ou um dos seus membros. Por isso se costuma dizer que eles têm o rei na barriga, que são presunçosos e se julgam mais do que os outros. Não são. Nem que fossem da realeza, nada dá o direito a uma pessoa de passar à frente de outra(s) numa qualquer fila, das muitas que diariamente se podem encontrar em qualquer lugar. Tirando raras exceções que são, basicamente, estar grávida, ter dificuldade em locomoção ou ter alguma outra deficiência que impeça de conseguir respeitar uma fila. Não conta a deficiência mental derivada apenas por pura falta de civismo. Esses devem viver noutra fauna.

E MUITOS MAIS

Conforme adverti no início, a lista não está completa. Faltam muitos mais. Como os Corta-Unhacas (que se divertem a cortar as unhas em qualquer lado... tic, tic, tic... Não é música mas fica no ouvido) ou os Tira-Cera (da família das espécies que gostam de enfiar os dedos nos orifícios do corpo humano, neste caso os ouvidos. Pensarão que são o Shrec e que vão fazer velas com o produto da colheita?), entre outros.

QUAIS TE IRRITAM MAIS?

Se não os incluí aqui, envia-mos e eu tratarei de os colocar num futuro post, neste blog. 


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segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Daqui parece que sou minúsculo



Daqui Parece Uma Montanha é o título da exposição temporária de arte contemporânea que inclui obras de artistas da Áustria, Dinamarca e Portugal. Com curadoria a cargo de Luísa Santos, pode ser visitada desde 5 de junho no CAM (Centro de Arte Moderna da Gulbenkian).
Até ao próximo dia 21 de setembro ainda podem ver, ouvir, enfim, experienciar a exposição que aos domingos é gratuita. 
Podem aproveitar para ver ou rever, com o mesmo bilhete, a exposição permanente.

As notas que aqui deixo sobre a exposição não são exaustivas. São apenas impressões das obras que mais me chamaram a atenção e à reflexão. Daí a sua seleção.

A primeira obra da exposição é de Katharina Lackner (1981) inclui-se em três binómios: grande e pequeno; ilusão e real; desconhecido e familiar" que se pode ver e experimentar mesmo antes de entrarmos na exposição propriamente dita, no hall de recepção, bilheteira e livraria. Trata-se de um "chapéu de chuva gigante (Slide, 2009-2013), suspenso pelo teto (que) permite passarmos de um lado ao outro do Hall. A experiência de pegar neste chapéu ampliado transporta-nos para o lugar da infância, como se fossemos personagens em histórias como as Viagens de Gulliver (1726), de Jonhatan Swift."

Uma enorme fotografia a preto e branco de uma montanha (Mountain, 2013), de Gregor Graf (1976), domina a primeira sala, mas é a instalação Amontoar em Carga e Descarga (2012-2013), da portuguesa Dalila Gonçalves (1982) que me chama a atenção. Ao longe, parece-me um gráfico de barras, mas também uma cordilheira de montanhas. Vista de perto, verifica-se que são esferográficas pretas com mais ou menos tinta e que dão essa ilusão pictórica.

Amontoar em Carga e Descarga (2012-2013), da portuguesa Dalila Gonçalves (1982)

Numa sala contígua entro, sozinho. Lá dentro apenas escuridão e uma caixa, aparentemente um piano com a tampa aberta. Vista de perto Pianoforte (2014), do austríaco Gregor Graf (1976) é apenas uma caixa negra com interior cândido, pés de piano. A instalação é acompanhada pelos acordes fortes de um piano, som que se ouve assim que se entra nesta sala e que nos dá a ilusão auditiva de que vem de dentro daquela caixa.

Pianoforte (2014), do austríaco Gregor Graf (1976)

É a gaiola gigante de circo Cage and Mirror (2011), do dinamarquês Jeppe Hein (1974), que domina a principal sala da exposição. Pela dimensão em tamanho das suas grades de aço, que nós aprisionam quer cá fora quer lá dentro, mas também pelas dimensões para as quais nos transporta através do enorme espelho circular suspenso em movimento de rotação ininterrupto no centro da gaiola onde podemos entrar. Ali ora aparecemos (no nosso reflexo) ora desaparecemos (no seu movimento). Aí "somos também, simultaneamente, observadores e observados, numa exposição inevitável e indesejável."

Cage and Mirror (2011), do dinamarquês Jeppe Hein (1974)

Mais à frente Dalila Gonçalves volta a iludir-nos, desta vez colocando-nos a pensar sobre o tempo, sobre os segundos da vida em Sustenido (2014). "O que parece uma linha de horizonte desenhada é afinal um conjunto de ponteiros de relógios maiores e menores, que impedem a passagem uns dos outros." A acompanhar, o barulho, o som, do tempo a passar. Tick, Tack, Tick, Tack...

A alta estrutura metálica de Pays/scope (2012), do português Miguel Palma (1964), contrasta propositadamente com a dimensão do resto das restantes obras e perante nos próprios. "O espelho no cimo da torre que nos confronta do alto dos seus seis metros revela que estivemos a ser observados num olhar telescópico da realidade." Uma vez mais o espelho, também redonda, onde procuramos reflexo: para uma maior elevação?

Pays/scope (2012), do português Miguel Palma (1964)


Explica a página em linha do CAM que
"A exposição Daqui Parece Uma Montanha reúne artistas contemporâneos austríacos, dinamarqueses e portugueses, que a uma primeira leitura, poderá parecer um panorama artístico destes países. Numa observação rápida dos três países, que todos são todos pequenos, fazem fronteira com países maiores com quem tiveram uma História difícil e com os quais mantêm uma relação estranha de comparação. Uma observação mais atenta permite um paralelo com a condição humana e a construção de uma série de dicotomias que a caracterizam. É precisamente nesta construção que a história da exposição se desenrola. As personagens (os trabalhos) desta história unem-se numa série de binómios: o grande em confronto com o pequeno; a ilusão do que o Outro parece ser e o real do que o Outro é; a relação observador e observado; a contradição entre desconhecido e conhecido. (...)
As surpresas deste percurso sentem-se no confronto. O confronto com o que é maior do que nós; o confronto com a idealização e a realidade; o confronto entre o desejo pelo desconhecido e a necessidade de refúgio. Estes pontos de confronto remetem para sintomas de um campo social comum que transcende fronteiras geográficas: daqui (seja de onde for) parece uma montanha." (CAM)
E nós tão pequeninos perante tão gigante criatividade.

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domingo, 14 de setembro de 2014

Memórias #5 : Primeiras cores


Quando tentava subir o parapeito da janela para olhar lá para baixo, a rua parecia estar muito longe. Tão profunda como a vontade de a alcançar com os olhos. A minha pequenitude impedia-me de lá chegar com os braços, mas não com os meus olhos verdes e curiosos pequenos pontos que, também esperançosos, sempre acharam que um dia lá chegariam.
- Um dia lá chegarei! – prometia.
Os telhados laranja dos prédios em frente eram o meu chão. No alto de um quarto andar, um pouco acima na colina que os restantes prédios da rua da Madragoa, estava no alto dos meus sonhos que aumentavam cada dia. E nem era preciso sonhar: os sonhos cresciam comigo. Os telhados laranja eram as minhas nuvens de criança.

Um dia cresci. Desci as escadas do prédio centenário, sem elevador. Fui ter com os meninos que brincavam na rua sempre calma, com o devido consentimento de minha generosa mãe. Ela não tinha muitas coisas para me dar. Quase nada que fosse de muito valor, desse valor que se esgota e regateia em qualquer bolsa de valores. Mas era incalculável o valor que na minha bolsa de memórias o carinho ela ia depositando a pouco e pouco.

Naquele dia fui brincar com os meninos do prédio em frente, sem idade, como eu. Com eles, até àquele dia, brincara apenas na minha imaginação, quando me empoleirava no parapeito da janela do único mas soalheiro quarto da casa. Brincadeiras azul algodão, como lhes chamo.

Quando desci e brinquei, pela primeira vez, com os outros sonhadores, as cores foram mudando os seus tons para coloridas brincadeiras, mais vivas e verdadeiras que as oníricas anteriores.

O chão: finalmente brincava lá em baixo, onde as ruas eram pretas-granito, de textura que marcava não só os meus pés, mas também os meus saltos e impulsionava as nossas pequenas vidas.

Em breve o preto e branco da calçada ficaria marcado em simples memórias da minha infância.

A adolescência passou quase tão depressa como apareceu: de surra e caprichosa, não querendo que lhe desse muita importância. Nem lhe dei. Nunca entendi muito bem o que queria dizer aquela nova fase da minha vida, nem sabia muito bem como ser adolescente. Ouvi dizer algumas vezes que era uma fase complicada. Mas para quem? Para mim? Para os outros? Tentei, então, fingir que era passageira e que brevemente seria adulto. Não o desejava firmemente, mas também não queria estar preso àquela idade. Queria crescer enormemente, absorvendo tudo o que aprendia, teimando sempre em deixar um pouco da minha infância dentro de mim. Talvez seja daí que vem a minha teimosia, uma resistência infantil... Prefiro dizer que é a parte às riscas de muitas cores da minha personalidade: as cores de que sou feito e que foram pintadas com lentidão mas talvez demasiado rápidas para a minha ansiosa vida.

Crédito de imagens:
Fantasy Portrait Paintings by Chris Buzelli;
Telhados de Lisboa, Maluda


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terça-feira, 9 de setembro de 2014

Não há feira que não dê em fartura (2003)


O cheiro das farturas não enjoa ao princípio da noite. O sol foi embora a altas horas, já a lua se queixava. As luzes da feira confundiram-se com o lusco fusco do final do dia e a festa apenas começava.

No pavilhão dos stands que mostravam (fazem eles o seu papel, como se ninguém que ali se encontra não se quisesse mostrar) e ao fundo o palco. A música contagia todos lá dentro. Mesmo quem não é adepto do pézinho da baila a perninha que por sua vez leva todo o corpo atrás. Mas quem dá o show dança o ventre com orgulho de quem já aprendeu esta nova modalidade e está aqui para todos verem. E vemos. E dança. E remexe. E não esquece. Está certinha, sim senhora, mas falta a alma que faz tanta falta quanto a cor que não lhe pega, neste meu país de todas as estações. Com pena (talvez não) que o Inverno deixe a pele sem marcas do sol, bamboleia-se, não é isso que a vai preocupar. O importante é não se enganar. Afinal as luzes sempre disfarçam e com o seu barulho não se percebe.

Cá em baixo o público vibra… não, vidra: está vidrado: eles, com os corpos das bailarinas, elas, por não terem os seus corpos. Em alguns casos, ainda bem, nem todos são figuras-modelo, muito menos bailarinas-modelo: se não se sabe a coreografia mais valia mexer a belly com uma sessão de yoga, por exemplo. Pelo menos tudo pode mexer – o poder é da mente.

Seja qual for o público que assiste, o desejo está contido. Seja a pitinha, a gaja ou o gajo, o segredo do desejo de ver o show não sairá deles próprios. Nem do pavilhão. Ser bailarino por um dia, por uma vida, aprender a arte ou lamentar que a namorada não saiba ou faça, um dia quem sabe numa festa surpresa, ficará apenas no íntimo de cada um. E é apenas seu.

A noite, por sua vez, é de todos e todos andam às voltas. Cá fora não se sabe nem se imagina o que se viu e ouviu lá dentro. No dragão da noite andámos à volta pela feira. Preços baixos, quase sempre (nem sequer é publicidade a hipermercado), a magia é franca e as farturas pedem-se com olhos e voz gulosa, mas comedida:
- São só duas, por favor!
E bastam! Fartam!

Vou-me embora. Como-as amanhã para relembrar.



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quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O meu reino por uma polaroid


Estava a ser um grande dia na praia que merecia ser compartilhado em alguma rede social, não importa qual rede. Assim, o casal com sua criança decidiu gravar esse momento com uma foto. A cena estava preparada: perto da água, onde castelos de areia foram orgulhosamente levantados, sentaram-se juntinhos. O pai pegou na camera, esticou o braço e apontou para os três.
"Partilhar". 
O botão foi pressionado. O momento não estava mais lá, mas em outro lugar na world wide web. Deixou sua existência, mas agora todo mundo sabia da sua felicidade. A camera voltou para o saco. O dia não tinha terminado e havia mais algumas horas de sol para desfrutar.

Logo a tarde calma seria interrompida por um pouco de areia que a filha ia jogar para o ar, cobrindo a toalha de praia do pai, que instantaneamente gritou um
- Está quieta. 
Isso não impediu a menina, que continuou a fazer o que estava orgulhosa e birrantemente a fazer. Os gritos e as palmadas rápidas mas ao de leve que o pai deu na sua perna não a fizeram parar. A pirralha agora começava a correr e quando ela estava perto de outras pessoas na praia a mãe gritou um sonoro
- Vem práqui. 
O resto do dia na praia continuou da mesma forma. Gritos, desobediência, clima ensolarado e quente,
- Merda, para quieta! 
a água agradável, calma, outro vem cá, gritos da pequena garota mimada e seus pais a acompanhar em coro, um pouco de vento, alguns petiscos de sandes e batatas fritas e o dia estava quase no fim.

Para o resto do mundo, familiares e amigos, as memórias que seriam lembradas ficaram registadas naquela única foto. A fotografia partilhada.

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"E não está ninguém que fixe este momento. O meu reino por uma polaroid, gritou Ricardo III, e ninguém lhe acudiu porque pedia cedo de mais." - José Saramago, Objecto quase (Cadeira), 1984



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segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Medos que dão lucros (2009)


O seguinte texto data de há precisamente cinco anos aquando da 'moda' da gripe A (ou H1N1, para quem gosta de preciosismos científicos). A moda pegou e pagou milhões de euros e dólares, e outras moedas mais ou menos fortes, aos senhores da indústria farmacêutica. Cinco anos depois o vírus que agora preocupa o mundo é outro e não tem cura nem vacina. Talvez não haja ainda número suficiente de infetados que o justifique. A doença, essa, tem quarenta anos e chama-se ébola.
Mas hoje recordo a epidemia que afligiu todo o mundo há pouco tempo. O suficiente para incutir nos hábitos diários de muito boa gente a embalagem com gel desinfetante, com ou sem cheiro.

* * *

1 de Setembro de 2009. Fim de férias (para quem as teve no “querido” mês de Agosto), regresso à rotina (para quem a tem, nos restantes meses não tão “queridos”). Regressa também o medo das gripes... ou nem por isso? As indicações do Ministério da Saúde estão espalhadas por todos os lados (televisão, rádio, jornais diários ou semanais, pagos ou gratuitos, revistas – sérias ou de “brincar às bonecas e aos bonecos” -, paragens de autocarros, nos próprios autocarros - e outros transportes públicos, com rodas ou sem elas -, etc)... (muitos etc).
A verdade é que não podemos ver (nem ouvir) ninguém a espirrar ou a tossir (que não faça como recomendado), sem que tentemos fugir para o local mais afastado possível, a fim de evitar a tal contaminação.

O juízo está feito à partida: quem espirra (ou tosse) não acredita que é gripe: é apenas constipação. Para quem vê (ou ouve), acredita imediatamente que é o vírus da letra A. Mesmo quando finge não acreditar, brinca, com expressões “Ai a gripe A”. Eu corrijo: a expressão devia ser “Ai a gripe, ai”.
Por mais que se fuja, estamos (os comuns “mortais” que viajam de transportes públicos) limitados ao número de lugares sentados ou em pé, e não há muito por onde fugir.
Usar uma máscara, dizem os entendidos, não “funciona” para quem não foi “apanhado” mas para evitar a transmissão por quem já a “apanhou”.

Depois há a questão das mãozinhas: onde as pôr? Para quem espirra (ou tosse), nunca à frente da boca quando o faz (vamos lá lembrar-nos de utilizar o antebraço ou temos lá tempo de puxar pelo lenço de papel, que nunca está à mão...). Quem (ainda) não tosse (ou espirra), é inevitável ter de agarrar ou tocar nas diversas coisas que tem para agarrar ou tocar no dia-a-dia: nos transportes (para quem os utiliza), nos cafés, restaurantes, bares, discotecas ou boites, o garfo, a faca, os copos, e outros etc...

Fugir para outro país, temo que também não resulte (a julgar pelos mapas e gráficos tão divulgados): mais tarde ou mais cedo, há-de lá chegar.

Depois vêm as teorias que tentam explicar o “fenómeno”: umas, que isto é “obra” das farmacêuticas e dos hospitais (afinal de contas, as doenças são o seu ganha pão... ou deve dizer-se “milhão”), que têm de escoar o produto (o já famoso Tamiflu – pelo sim pelo não, é melhor andar com uma embalagem no bolso, como o outro senhor apresentador de televisão). Outras, afirmam que esta gripe não fará tantas vítimas como a “outra”, a dita “normal” (que, pasme-se, faz mais danos, por ano, do que possamos imaginar).
De uma forma ou de outra, já todos entrámos em pânico calmamente (como disse um outro).
Se por um lado a mensagem do dito Ministério é não alarmar mas tentar prevenir (neste momento a prioridade já não é a prevenção mas a imediata contenção do “alastramento”), a comunicação social dá conta, minuto a minuto, do estado da pandemia – o que não ajuda e lá estamos nós todos, calmamente, a panicar.

Há que tratar, sim, as pessoas afetadas e infetadas, mas há que tratar o civismo de todas as outras que (ainda) não foram. A educação e o respeito que temos (ou devemos ter) para com os outros podem, neste país (já) desenvolvido, minorar este problema mundial e de todos nós.

Pelo menos até à próxima gripe (a “B”, se seguir o alfabeto). Enquanto isso, uns rezam, outros aguardam que não lhes “toque” a eles (ou aos próximos) ou que algum milagre (ou descoberta científica) aconteça e vá “destruindo” todas estas “doenças”.

Até lá, atenção aos gafanhotos, perdigotos e outros “otos”, que se vão “espalhando” pelas bocas e narizes deste (Portugal) mundo.

* * * 

Atenção: a opinião do autor é meramente lúdica e não deve ser encarada como forma de prevenção de gripes nem constipações, sendo que os efeitos secundários mais prováveis (registados em pelo menos 99% dos indivíduos – 1% estaria distraído na altura que lia o artigo) é o riso e a boa disposição. No entanto, se o caro leitor puder ou quiser fazer alguma coisa para melhorar o estado da pandemia, siga à risca o plano existente – resumindo: lave as mãos periodicamente, utilize o lenço ou o antebraço para espirrar, não saia à rua ou vá para locais com muita gente se tiver os sintomas (devendo ligar para a linha divulgada) e sobretudo: não espirre ou tussa para cima dos outros.