segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O fantasma e outras artes (Ensaio Intersemiótico)


As diversas naturezas na arte comunicam entre si. É necessária uma intersemiótica capaz de descrever dois sistemas diferentes, mantendo uma “linguagem” comum aos sistemas em estudo. Álvaro Manuel Machado e Daniel Henri-Pageaux consideram que «a Literatura Comparada é uma orientação metodológica interdisciplinar» , numa confluência comparativista entre os conhecimentos sobre o fenómeno literário e o fenómeno cultura (a literatura comparada).

A relação da literatura e as outras artes (como a pintura, a escultura, a música, a fotografia, o cinema, a ilustração, a banda desenhada, a arquitectura ou a dança), e destas com a literatura, é uma constante ao longo do tempo e da História: escultura e literatura (Auguste Rodin e Rainer Maria Rilke) ou literatura e música (Thomas Man e Wilhelm Richard), por exemplo. É comum vermos, lermos ou ouvirmos obras que nos remetem para outras artes e é igualmente interessante constatar como os artistas utilizaram ou utilizam as mais diversas técnicas para fazer transmitir a sua mensagem.

“O Fantasma da Ópera” será um perfeito exemplo de (mais do que de influência) uma “osmose”  entre as artes. Na imortal obra literária, escrita em 1910 pelo francês Gaston Leroux (1868-1927), o autor conjuga a sua imaginação a alguns factos reais, como o existente lago subterrâneo da Ópera de Paris (actualmente chamada Ópera Garnier ou Palais Garnier), depois de uma visita ao labiríntico local (onde se terá perdido) ou como o episódio da queda do enorme lustre sobre uma lotação esgotada (“acidente” aparentemente causado por um militante anarquista que terá colocado uma bomba no lustre). Curiosamente, (o tempo e a “maturidade” - ou devo dizer reconhecimento - do público tem destas coisas) a obra não foi um sucesso imediato, mas terá aos poucos conquistado o seu lugar merecido de obra-prima. Edgar Allan Poe, Arthur Conan Doyle, Stendhal, Alexandre Dumas e Vitor Hugo (e até a sua carreira como jornalista) terão influenciado a escrita de Leroux.

Gaston Leroux - Le Fantôme de l'Opéra.jpg
Edição francesa de 1920

Apesar de ser mundialmente (re)conhecido pelas suas músicas, a primeira versão cinematográfica de “O Fantasma da Ópera” foi um filme mudo (e em preto e branco) de 1925, saído dos estúdios da Universal (Estados Unidos da América), produção na qual Leroux esteve envolvido. Em 1943 Arthur Lubin faz a sua própria adaptação, já a cores, com milhares de cantores e um orçamento bem mais generoso. Outras versões no cinema se têm seguido, nas quais os seus realizadores (como Brian De Palma ou Joel Schumaker – com o qual o filme esteve nomeado para três categorias nos Óscares© da Academia) deram mais ou menos destaque ao carácter humano, ao terror, à tragédia ou ao romance do enredo.

Poster do filme, 1925

Mas é no teatro musical que a obra de Leroux é reconhecida. A peça (de grande sucesso) é trazida ao palco (mais precisamente do The Duke’s Playhouse, em Lancaster, Inglaterra) pela primeira vez em 1976 pelo encenador e dramaturgo britânico Ken Hill (1937-1995).

É difícil dissociar “O Fantasma da Ópera” do género musical. Igualmente interessante é constatar que Hill conseguiu enriquecer a sua interpretação contemporânea através da adaptação de obras de compositores como Jacques Offenbach (“Jamais, foi de Cicerone", de La Vie Parisienne), Charles Gounod ("Maudites soyez-vous", de Fausto), Giuseppe Verdi  ("O inferno! Amelia qui!", de Simon Boccanegra), Arrigo Boito ("Son lo spirito che nega", de Mefistofeles), Antonín Dvorák (“Mesicku na nebi hlubokém", de Rusalka), Georges Bizet ("Je crois entendre encore", de Les Pêcheurs de Perles), Carl Maria von Weber ("Du weißt daß, meine Frist", de Der Freischütz), entre outros.

Uma década depois é a vez do premiado compositor e produtor britânico Andrew Lloyd Webber fazer a sua própria adaptação musical, que estreia no West End de Londres. Desde então tem corrido o mundo, mantém-se ainda em cena no Her Majesty’s Theatre, em Londres (onde se estreou e onde assisti em 2004) e é considerada a mais bem sucedida peça de entertenimento de todos os tempos. Por muitos outros séculos outros tantos artistas serão influenciados por esta (e tantas outras) obras artísticas.

The Phantom of the Opera (Broadway) January 26, 1988 Book by Richard Stilgoe & Andrew Lloyd Webber, Music by Andrew Lloyd Webber, Lyrics by Charles Hart, Directed by Harold Prince Shown: Michael Crawford (as The Phantom of the Opera), Sarah Brightman (as Christine Daae`) This is a PR photo. WENN does not claim any Copyright or License in the attached material. Fees charged by WENN are for WENN's services only, and do not, nor are they intended to, convey to the user any ownership of Copyright or License in the material. By publishing this material, the user expressly agrees to indemnify and to hold WENN harmless from any claims, demands, or causes of action arising out of or connected in any way with user's publication of the material. Supplied by WENN.com
Michael Crawford (como Erik, o Fantasma), Sarah Brightman (como Christine Daae`) em The Phantom of the Opera (Broadway) 26 de janeiro, 1988, Libreto de Richard Stilgoe & Andrew Lloyd Webber, Música de Andrew Lloyd Webber, Letra de Charles Hart, Encenação de Harold Prince Shown

«A multiplicidade de sistemas autónomos de criação e comunicação, sensoriais e linguísticos, não deve ser fechada em si mesma [...]» - André-Michel Rousseau. 
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REFERÊNCIAS BIBLIO E WEBGRÁFICAS

  MACHADO, Álvaro Manuel e PAGEAUX, Daniel-Henri (1988) - Da literatura comparada à teoria da literatura, Lisboa, Edições 70;
  PAGEAUX, Daniel-Henri (1994) – Littérature et Arts, Paris, Armand Colin Éditeur;
  ROUSSEAU, André-Michel (1977) - Artes e Literaturas: um “estado presente” e algumas reflexões, Synthesis;

Ópera de Paris: www.operadeparis.fr  |  http://oficinadeteatro.com/artigos/materias-especiais/90-opera-garnier-o-espirito-de-paris  |  http://pt.wikipedia.org/wiki/Opera_Garnier;
“O Fantasma da Ópera” na Literatura: Gaston Leroux - www.gaston-leroux.net;
“O Fantasma da Ópera” no Teatro: www.kenhillsphantomoftheopera.co.uk | http://www.thephantomoftheopera.com;
“O Fantasma da Ópera” no Cinema: http://homevideo.universalstudios.com/monsters/phantom.html.

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Primeira imagem: Fotograma do filme O Fantasma da ÓperaUniversal Pictures, 1925. Direção de Rupert Julian.  Com Lon Chaney  (como Erik, o Fantasma), Mary Philbin (como Christine Daae`)



quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Luar (doce) de Natal (Conto, 2009)



Enquanto percorria as ruas da cidade, principais artérias de uma baixa em alta tensão, devorava, lambia a cidade com os olhos, esbugalhados de fome e “comia” com gosto, com esses mesmos olhos, as luzes de Natal, como se fossem chocolatinhos embrulhados em papel delicado de alumínio.

- Que delícia! - pensava.

Ninguém lhe perguntava porque ia ele a sorrir, num autocarro apinhado, atafulhado de pessoas, de sacos, tantos com presentes. Ele continuava a pensar:
- É tão bom o frio que está lá fora. Aqui dentro está quentinho... hum! - estava feliz.
Em casa, enquanto a mãe embrulhava os presentes com jeitinho e movimentos quase coreografados mas delicados, ele embrulhava, sem papel, com beijinhos cheios de carinho, os pensamentos, bem arrumadinhos, para os entregar na noite especial.

Na noite de Natal, depois de ter desembrulhado os beijinhos todos e distribuído pelas pessoas que se juntaram à volta da grande árvore, a mãe chegou-se ao pé de si e disse-lhe ao ouvido:
- Não faz mal, não faz mal!
Apressadas, quase stressadas por nunca mais chegar a sua vez, as crianças esqueceram (ou nunca chegaram a saber?) todo o amor que ali se vivia. Nas mãos pequeninas, de crianças ainda mais pequenas, imensos brinquedos e nenhum, nem um só beijinho saiu de lá.
- Vá lá, não faz mal. P’ró ano há outro Natal!
O menino não chorou, porque a mãe lá ficou e ao seu lado o amou. Quando à noite se deitou, lembrou, lembrou, lembrou, que afinal o tal beijo que quis dar a toda a gente, voltava sob a forma de um queijo que a lua devorou. Essa, estava lá fora, alta, por entre as árvores escondida a devorar, tão contente, os tantos carinhos que ele tinha oferecido como presente.


domingo, 21 de dezembro de 2014

Arte e(m) multimédia : O projecto Media Art Net


 GFP Bunny (2000), Eduardo Kac


Toda a arte (incluindo a arte multimédia ou digital) devia estar num museu
Reformulando a minha própria frase (anterior), diria antes que a Arte “está” num museu. Aliás, em milhões de “museus” por todo o mundo, numa “casa” que já “apropriámos” e a que se “chamou” internet. Isto porque, se procurarmos nos sítios certos (e por vezes, até através dos mais incertos), encontramos arte sobre todas as formas e feitios nesse maravilhoso “mundo” (ou universo?). A literatura, a música, o design, a escultura, o cinema, a fotografia e tantas outras formas de arte (incluindo os próprios museus) podem ser vistos e ouvidos (e sentidos) “online”!
"All media are extensions of some human faculty- psychic or physical […] the wheel is an extension of the foot, the book is an extension of the eye, clothing an extension of the skin, electric circuitry an extension of the central nervous system" (1)The Medium is The Message, Marshall McLuhan  
O projecto Media Art Net (que se pode aceder em www.mediaartnet.org) foi concebido por Dieter Daniels e Rudolf Frieling, com fundos do Ministério de Pesquisa e Educação da Alemanha, apoiado pelo Goethe-Institut e pelo Centro para a Arte e Média  , que tem como objectivos estabelecer: a) uma estrutura cibernáutica que oferece, gratuitamente, conteúdos altamente qualificados, numa variedade de tópicos relacionados com os média e a arte; b) teorica e audio-visualmente formas convincentes de relações e referências que atravessam os limites do género.

Este meio, só por si, é já a mensagem que eu pretendo transmitir (pegando nas visionárias palavras de Marshall McLuhan). Quem visita o “sítio” deste projecto, pode aceder aos assuntos através de diferentes abordagens: pelos sumários visuais (explorando), pelo índice ou pelo motor de busca (pesquisa específica). Reúne informação deveras interessante, quer pelo seu aspecto científico e histórico, quer pela sua perspectiva artística, não se tratando de um meio que é, por si só, um objecto artístico (embora possamos reflectir sobre o web-design como uma inovadora forma de arte multimédia) – inúmeros exemplos deste género abundam na World Wide Web   - mas antes de um veículo para a informação artística. Num primeiro momento, podemos visitar as posições históricas e actuais, assim como os contextos da arte multimédia (uma espécie de “overview”).

Num segundo momento, podemos ir ao encontro dos oito tópicos temáticos :

1 | Estética do Digital
Os discursos e tendências que nos ajudam a entender as teorias estéticas, assim como a simbiose entre os pensamentos científico, artístico, sistémico e dos média;

2 | Relação entre Som e Imagem
Os movimentos vanguardistas do século XX e a relação entre as inovações tecnológicas e as novas formas de expressão artística;

3 | Corpos “Cyborg” 
As representações tecno-orgânicas e híbridas, os corpos sintéticos ou corpo-máquina;

4 | Foto/“Byte” - como a fotografia revolucionou a produção, a distribuição e a percepção das imagens, desde o analógico ao digital;

5 | Arte e Cinematografia 
Como o filme, chamado já de “velho” new media, é importante para entender os novos média e a arte multimédia;

6 | Mapeamento e Texto
Investigação a diferentes áreas e campos de interesse que “emergiram” entre a imagem e o texto;

7 | Ferramentas Geracionais
A software art – poderão as formas de arte ser geradas apenas de/pelo software?;

8 | Esfera_S Públicas 
A privacidade individual, espaço também de intervenção e crítica aberto à participação do público.

Curiosamente, todos estes tópicos formam uma visão sobre a «Obra de Arte Total» (a lembrar Wagner), uma espécie de “ópera” interactiva, onde as diversas linguagens artísticas, as diversas culturas (oral, visual e electrónica), de que falava McLuhan, se cruzam numa rede (net) sem rede (sem medo de cair no esquecimento porque faz parte já da história e da evolução do Homem e da Arte), que nos separa (fisicamente) e aproxima (virtualmente), como que uma “retribalização” na aldeia global que é esta nossa sociedade cada vez mais aberta. E, quase sem nos apercebermos, vivemos já num futuro. Temos, “apenas”, de estar atentos aos nossos sentidos e percepções.
"You see, Dad, Professor McLuhan says that the environment that man creates becomes his medium for defining his role in it. The invention of type created linear, or sequential thought, separating thought from action. Now, with TV and folk singing, thought and action are closer and social involvement is greater. We again live in a village. Get it?" (2) - The New Yorker Magazine 1966 - The Medium is the Massage
Eduardo Kac, «GFP Bunny», 2000


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(1)"Todos o media são extensões de alguma faculdade humana - física ou mental [...] a roda é uma extensão do pé, o livro é uma extensão do olho, a roupa uma extensão da pele, o circuito elétrico uma extensão do sistema nervoso central." O Media é a Mensagem, Marshall McLuhan  

(2) "Vês, pai, o Professor McLuhan diz que o ambiente que o homem cria torna-se o meio (media) para nele definir o seu papel. A invenção da tipografia criou um pensamento linear ou sequencial, separando o pensamento da ação. Agora, com a televisão e a música popular, o pensamento e a ação estão mais próximos e o envolvimento social é maior. Vivemos novamente numa aldeia. Entendeste?" - The New Yorker Magazine 1966 - The Medium is the Massage

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

A caridade que (não) é um radiador enferrujado


O Guardian 'virou a mesa' deste Natal, a época em que a caridade(zinha) abunda, e mostra 11 das melhores paródias a campanhas de ajuda. Eu escolhi uma, apenas, a da Save Africa, que ganhou um Rusty Radiator Award e que me fez rir do princípio ao fim. Mas podem ver as restantes aqui. Por exemplo: Apesar de os noruegueses terem sido considerados as pessoas mais felizes do mundo, precisam de ajuda no que toca a calor. Aí entra o povo africano, que tem muito calor no coração, para dar e vender. Ou oferecer.

Podem ver o vídeo dessa campanha mais abaixo. Não é um gozo, mas uma paródia, que não deixa de apelar à nossa sensibilização para os problemas humanitários do mundo. Podemos doar, sempre que quisermos ou pudermos, durante todo o ano. Sem estereótipos!
«Errar é humano, tropeçar é comum. Ser capaz de rir de si mesmo é maturidade...»
Bárbara Coré
«Quem sabe rir de si mesmo se diverte muito mais.»
Saint-Simon
 
«Feliz é aquele que pode rir de si mesmo. Ele nunca deixa de se divertir.»
Habib Bourguiba
 
«Nem todo o momento é possível rir de si mesmo, mesmo assim rir de si mesmo produz um sono melhor.»
PríncipeThi
Um dia vou ver quem são estas pessoas que citei. Hoje é o dia de rir. Que sejam todos os dias. :)


((Caso não consiga visualizar o vídeo, clique no link http://youtu.be/xbqA6o8_WC0 ))

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Belo e Beleza : Platão vs. Plotino


Wang Du, Galerie Laurent Godin, Paris, 2005.

Para Platão (c. 427 a.c – c. 347 a.c) o que não for Verdadeiro, não é Belo e, por isso, não representa a arte. Considera mesmo que a arte é uma espécie de loucura divina, comparando-a à religião e ao amor (Rosana Madjarof). O amor é, aliás, o “responsável” pelos feitos mais belos, e amar o mesmo que o supremo Bem. A beleza está no domínio do sensível. No entanto a estética de Platão é evolutiva e é, por isso, natural que nos últimos textos apresente pontos de vista divergentes com outros anteriores. O resultado dessa “evolução” hierarquiza a beleza em três tipos: no Hípias Maior, a beleza do corpo pertence à beleza inferior (junto a qualidades inferiores como a saúde, força e riqueza); no Fedro (sobretudo), a beleza das almas, manifestando-se a beleza verdadeira; e a beleza em si, para os sábios.
No Banquete Platão estabelece, definitivamente, estes três níveis, expondo o caminho do Amor em direcção à Beleza. Para ele o amor é o desejo do próprio amor, é o desejo pelo que se não tem, para um Amor Absoluto e incondicional. Embora amar o Amor não seja belo, através do amor podemos perceber a beleza Ideal, absoluta, eterna e infinita (divina).

Filosofia “anti-arte”
Na filosofia platónica o percurso para a verdade é prejudicado pelo erro “cometido” pelo mimetismo ou imitação que a arte faz (Panofsky): 
é do “Belo-em-si” que precisamos de nos aproximar o mais possível, embora admita ser intangível, não estando ao nível da vida, do mundo terrestre. 
Através da imitação não se pode alcançar o mundo das Ideias – o mundo que importa, verdadeiramente, conhecer. Para Platão, a realidade não é mais do que uma cópia imperfeita (Bayer); o falso, ilusório, a retórica ou o trompe l’oeil não são dignos de serem qualificados como objectos de arte. Desta forma a pintura, embora seja considerada obra de arte, é “perigosa” porque prejudica o “caminho na direcção da verdade”, é uma “ilusão fictícia” da realidade, “enganando-nos com as suas formas e cores” (Huisman). Platão faz a distinção das artes que considera verdadeiras: arquitectura, escultura, teatro, pela harmonia, simplicidade e pureza que podem transmitir. 

A influência de Platão
Segundo Huisman, o platonismo exerceu uma influência tremenda sobre os seus sucessores “pensadores” e filósofos. Aliás, a sua influência no epicurismo é incontestável, embora exista uma diferença considerável entre o sentido das Ideias e o jogo da imaginação nos Epicuristas, para quem o bem é o prazer e o mal a dor (Bayer). Nos séculos seguintes notar-se-á, também, essa influência, quer na Idade Média, no Renascimento ou até no século XVII (Huisman).

«A beleza reside essencialmente nas almas.» - Platão
Plotino (205 – 270) é considerado o fundador da escola neoplatónica. A expressão neoplatonismo serve para diferenciar a sua filosofia da de Platão (Jayme Paviani). A sua estética é inspirada na de Platão, embora ao espírito dialético deste se oponha o seu espirito místico (a primeira forma da filosofia mística). O seu “compromisso com a beleza” renova, de certa forma, o conceito de Arte”.
Encontra-se em Plotino uma teoria da medida e da proporção, a que junta uma teoria da pureza e do branco, assim como uma teoria do brilho e da beleza imaterial (de Platão), mas o plotinismo ultrapassa-a para o ilimitado, “sem medida”. Essa visão é clara nos seus três grandes tratados estéticos (Bayer):

Do belo – no qual, como ponto de partida, toma o ponto de vista de Platão: a beleza da vista e do ouvido; depois a beleza intelectual das ocupações, das acções, das ciências e das virtudes. «O belo encontra-se sobretudo na vista; está também no ouvido, na combinação das palavras na música de toda a espécie; porque as melodias e os ritmos são belos; lá também, subindo das sensações para um domínio superior; ocupações, acções, maneiras de ser belas; há a beleza das ciências e das virtudes.», numa clara referência mística.

Da beleza inteligível: o belo é o laço das Ideias. A profunda ligação entre o eu e o real. O processo de purificação para alcançar esta visão é o que se pode chamar o misticismo de Plotino: uma contemplação às cegas, uma visão virada para dentro e sem ligação com o exterior. A expressão “máxima”, com “inspiração superior”, não através da cópia (a que se opõe) mas através do encontro de si próprio como artista (“criador”), uno com a natureza. “O bem é o belo agido. O belo é o bem contemplado.”

Do bem: Enquanto a realidade para Platão não era mais do que uma cópia imperfeita, Plotino reduziu o universo à visão porque toda a natureza não é mais do que uma visão imperfeita. Esse iluminismo contradiz a dialética de Platão e revela, pela primeira vez, a beleza do bem, suprema, divina, numa concepção mística do universo. E sobre a beleza do informe diz: “(...) Não podemos apreender nem a figura, nem a forma (...O O amor que por ele temos é sem medida (...) é uma beleza acima da beleza”.
«As artes não se limitam à imitação pura e simples daquilo que passa diante do nosso olhar.» - Plotino
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola – História da Filosofia vol. I (Editorial Presença, 1985);
BAYER, Raymond – História da Estética (Editorial Estampa Lisboa, 1979);
GONÇALVES, Carla Alexandra - Estética e Teoria Da Arte – Sobre O Mundo e o Entendimento das Obras de Arte - e-book (Universidade Aberta, 2008);
HUISMAN, Denis – A Estética (Edições 70, 1984);
READ, Herbert – A Educação pela Arte (Edições 70, 1982); 
MADJAROF, Rosana – in http://www.mundodosfilosofos.com.br/platao2.htm;
PAVIANI, Jayme – Filosofia e Método em Platão (edipucrs, 2001);
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - O Neoplatonismo: Plotino - http://www.pucsp.br/~filopuc/verbete/plotino.htm;


domingo, 14 de dezembro de 2014

Kalocagatia para Sócrates

Ballerina on a string, Banksy

O conceito de Beleza poder-se-ia, em Sócrates, definir em apenas uma palavra: kalocagatia. Não fosse o grande filósofo um homem, não de grandes palavras escritas mas ditas, não seria preciso dizer (ou escrever) mais nada. Nascido de mãe parteira e pai artista (escultor), é, no mínimo, curioso como conseguiu, com a sua tão irónica (e conhecida) frase «só sei que nada sei», transmitir tantos ensinamentos e dar “à luz” um processo que, através do diálogo, levava o seu interlocutor «a descobrir por si próprio a falsidade do seu ponto de vista e a exactidão do de Sócrates» (Legrand:250). A esta arte foi dado o nome de maiêutica, precisamente em referência ao ofício de sua mãe.

Atenas “gerou”, no ano de 470 a.c., o homem que viria a “revolucionar” (renovar ?) o pensamento filosófico - afinal, “combateu” o sofismo da época  (Cordon e Martinez:59): ao contrário dos sofistas, defendia a «universalidade dos conceitos», porque tinha uma «grande vontade de mudar a sua sociedade» (Gonçalves:80)  – e a influenciar os vindouros.  Como se de uma “restauração” da linguagem dos homens (idem:81) se tratasse, ou seja, de um re-arranjar da forma como estes se organizavam, de acordo com o valor universal da unidade no entendimento em sociedade. Esse valor devia ser comum à comunidade e só assim se podiam entender os conceitos de Belo e Feio.
Porque essa educação dos homens não é feita, absolutamente, de forma linear, não se pode utilizar apenas uma palavra para entender, então, o conceito de Beleza para Sócrates. Se, ainda assim, quisermos defini-la de forma simples, podemos dizer que será uma junção «do belo com o agradável, o bom e o útil» , associada à Moral e à Política.

No entanto foi necessário interrogar-se (a si, como a outros diversos interlocutores), sobre o “traço comum” entre as coisas belas mas tão diferentes, concluindo que a Beleza em si (kalon kath’auto) existe apenas se, com o Bem, estiver relacionada ao kromenon, isto é, ao «conveniente, útil» (Bayer:34). Neste sentido, se uma coisa feia for útil, é, igualmente, bela.
A sua estética é utilitária, cuja Beleza deve atingir a perfeição, a virtuosidade (virtú), através da sabedoria e da harmonia entre os os homens (a unidade, mencionada anteriormente). Embora na natureza não exista nada que não contenha imperfeições, deverão reunir-se as coisas belas que existem dispersas, numa espécie de “movimento” que passa da desordem ou do múltiplo para a ordem ou Uno. Esse “movimento” de procura é a própria aquisição de conhecimento que conduzirá à verdade.

A maiêutica e a kalocagatia são dois pontos essenciais da doutrina socrática. Pelo diálogo Sócrates faz com que o indivíduo se questione e entenda o seu valor interior (a sua alma ou psyché), de forma a que, na sociedade de que faz parte, através do seu conhecimento intelectual e moral (saber), dos seus sentidos, da contemplação, da actividade prática,  da estética e da bondade, se atinja ou se aproxime da verdadeira Beleza.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAYER, Raymond, História da Estética, Editorial Estampa, Lisboa, 1979;
CORDON, Juan Manuel Navarro e MARTINEZ, Tomas Calvo – História da Filosofia, vol.1, Edições 70, Lisboa,1989; 
FERREIRA, João Monge, definição de Kalocagatia, em http://republicacriativa.wordpress.com/rastos/;
GONÇALVES, Carla Alexandra - Estética e Teoria Da Arte – Sobre O Mundo e o Entendimento das Obras de Arte - e-book, Universidade Aberta, 2008;
LEGRAND, Gerard – Dicionário de Filosofia, Edições 70, Lisboa, 1991;



quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

A obra de arte e a sua (des)construção


«Aquele que se concentra, diante de uma obra de arte, mergulha dentro dela.» - Walter Benjamim
Realidade Virtual (RV): prémio para o melhor oxímoro   
Um amigo enviou-me uma imagem de um cavalo, de Da  Vinci, que se passeia numa pintura de Turner. Pergunta: quem é o autor da “obra”? Turner, Da Vinci, o meu amigo... ou os três? Ao refletirmos sobre a identidade, a unicidade, a reprodutibilidade, e a facilidade (velocidade) com que os bits chegam até nós, imaginamos quantos elementos dessa imagem (picture elements, ou pixéis) se “perderam” pelo caminho. Não saberemos de que forma as interferências influenciaram a recepção. Nem devemos assumir, por mais precisa que seja essa “reconstrução”, que estamos perante o “objecto” original. Desde sempre as obras de arte foram reproduzidas, mas o hic et nunc e a aura (“alma”) do original perde-se, deixando-se “esvoaçar” pela cópia, assunto que W. Benjamim investigou pertinentemente (o exemplo do cinema.)



Da simulação ou imitação à estimulação
A arte, como foi conhecida durante séculos, está diferente. Há compradores das obras concebidas pelos robots de Leonel Moura, que diz “expandir as fronteiras do que se considera arte”. (Nunes) Somos seres que actualizam a forma como codificamos, transmitimos e recepcionamos a informação, modificando, até, o nosso modo de sentir e de perceber. A crise conceptual, que “ameaça” as formas de arte, que Lev Manovich refere em Post-media Aesthetics, terá origem na velocidade com que as novas formas artísticas se desenvolvem, a par com o desenvolvimento tecnológico. Será sinónimo de evolução cultural? A cultura actual é cada vez mais “interactiva, participativa, relacional e colectiva”. Mas essa “cultura de software” em que vivemos (Manovich), e as novas práticas de “fazer arte”, não substituem as da arte moderna.

Negroponte profetizava  que “ser digital é a opção de ser independente de normas limitativas.” (Negroponte:51) Teremos já entrado na (necessária) fase que Peter Weable  chama de  “estimulação”? Os processadores computacionais evoluíram, os objectos digitais parecem “menos pixelizados”-mais reais?- mas substituirão a experiência “ao vivo” que uma obra de arte proporciona.

Eu não quero que os meus átomos se virtualizem, nem apertar a mão a um robot! Terá o futuro já começado? (…) ‘Cause we are living in a conceptual world, and I am a digital boy.
«A Realidade Virtual pode tornar o artificial tanto ou mais realista que o real.” - Nicholas Negroponte
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REFERÊNCIAS BIBLIO E WEBGRÁFICAS

BARRELA, Nuno, FIRMINO, Joaquim e ALMEIDA, Vitor (2006) – Hipertexto e Hipermédia, in Concepção de Materiais Multimédia. Lisboa. Ed. Faculdade de Educação e Psicologia – Universidade Católica Portuguesa (excertos disponibilizados pelo docente da UC de Artes e Multimédia in http://www.moodle.univ-ab.pt/moodle/file.php/5460/Actividades_09/04/HIPERTEXTO_E_HIPERMEDIA.pdf ).
BENJAMIM, Walter (1936) – A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. Tradução de José Lino Grünnewald do original alemão: "Das Kunstwerk im Zeitalter seiner techniscen Reproduzierbarkeit", em Illuminationen, Frankfurt am Main, 1961, Surkhamp Verlag, pp. 148-184. (publicada na obra A Idéia do Cinema, Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, pp. 55-95, disponível em http://antivalor.vilabol.uol.com.br/textos/
frankfurt/benjamin/benjamin_06.htm).
MANOVICH, Lev – Post-media Aesthetic. (Fonte: www.manovich.net/IA/index.html, acessado em 8/Abr./2006 e disponibilizado pelo docente da UC de Artes e Multimédia in http://www.moodle.univab.pt/moodle/file.php/5460/
Actividades_09/03/Post_media_aesthetics1.pdf).
MANOVICH, Lev (2008) - Software takes command, versão digital (link em www.manovich.net - http://lab.softwarestudies.com/2008/11/softbook.html).
NEGROPONTE, Nicholas (1995) - Ser Digital. Tradução de Francisco Silva. Lisboa. Editorial Caminho.
NUNES, Maria Leonor (2010) - Dossier A invenção do futuro. Jornal de Letras, Ano XXX, número 1031.
PACKER, Randall - Just What Is Multimedia, Anyway? Universidade da Califórnia, Berkeley (IEEEXplore – Digital Library in http://ieeexplore.ieee.org/stamp/stamp.jsp?arnumber=00752965 ).

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

A margem do erro


Sabia que no mundo há mais de seis biliões ( seis mil milhões ) de pessoas que NÃO passam fome? Ou seja, a maior parte da população mundial. Espero que o leitor faça parte deste grande grupo, mas este texto é sobre a outra parte.

Os inquéritos ou sondagens que se levam com muita frequência a cabo pecam sempre por não conseguirem resultados cem porcento corretos. Para já porque se tratam frequentemente de amostras de uma determinada população. À exceção de um census, que se destina a toda a população que se quer analisar. No entanto, mesmo neste caso existe o erro que é o da subjetividade, no que às opiniões diz respeito, já que os dados sociográficos (como a idade, género, altura, largura e outras gorduras sociológicas) são mais absolutos. E até estes costumam mudar: cada vez estamos mais velhos ou queremos parecer ( e até ser ) mais novos, estamos mais magros ou gordos, vivemos aqui ou ali, e mesmo quando não vivemos aqui podemos estar a passar uns tempos acolá. Acontece o mesmo no género de uma pessoa, que já foi bem mais fixo do que é atualmente.

Embora seja uma ciência social, a análise dos resultados deste tipo de método quantitativo de estudo não deixa de dar uma ideia sobre determinado assunto. Os estatísticos - os senhores ou as senhoras  que analisam as estatísticas - tendem a acertar ao meio, nas médias, nas medianas, lembrando-me aquele texto, que quase em jeito de anedota conta:

"Um biólogo, um antropólogo e um estatístico foram à caça. O biólogo apontou para o alce e acertou meio metro à esquerda. O antropólogo fez pontaria e acertou meio metro à direita. Vem o estatístico que diz que o resultado da caça permitiu acertar em cheio."

É caricata, esta média, mas a alegoria não deixa de estar correta e aplica-se neste tipo de análises baseadas na quantidade de dados. É caso para dizer que se eu comer um frango e o leitor não comer nenhum, pode dizer-se que ambos comemos metade. É a média da gula e da fome.
Na época natalícia que se aproxima e onde já mergulham a maior parte das cidades, incluindo as cidades comerciais, aproxima-se a generosidade globalizada das pessoas e a sua atenção volta-se para o ato de dar a quem mais precisa. Um ato que não se condena nem nesta, nem nas restantes épocas do ano. Uma dessas campanhas de solidariedade é no combate à fome, precisamente.

Mas vamos a números. Sabe-se que no mundo há mais de seis biliões ( seis mil milhões ) de pessoas que NÃO passam fome. Ou seja, a maior parte da população mundial. É na margem deste erro que se  encontra o 'erro' que vai para além da estatística e se entra na humanização da questão. Ou desumanização, pois o outro lado dos números esconde, deixando bem à vista, 805 milhões de pessoas que não têm comida suficiente para levar uma vida ativa saudável. Isto corresponde a uma em cada nove pessoas no planeta Terra. Quem o diz é a World Food Programme (WFP), "a maior agência humanitária do mundo no combate à fome mundial", que informa:

Dois terços do total da população com fome mora na Ásia, enquanto em África uma em cada quatro pessoas está mal nutrida. Aliás, a má nutrição ainda é a causa de morte em quase metade ( 45% ) das crianças com menos de cinco anos. São mais de três milhões de crianças por ano! E são cerca de cem milhões aquelas abaixo do peso ideal, uma em cada seis. E se as mulheres das zonas rurais tivessem o mesmo acesso aos recursos quanto os homens, o número de pessoas com fome no mundo podia reduzir até 150 milhões. A WFP calcula que por ano são precisos 3,2 biliões de dólares ( americanos ) para chegar a todos os 66 milhões de crianças com fome, em idade escolar. 

Estes são, grosso modo, os números das estatísticas. O problema é que cada número é uma pessoa e uma vida. E para essas não pode haver margem para erro, já que significa ter ou não ter o que comer. Tudo o resto fica em perspetiva: as luzes, a abundância, o consumir desenfreadamente. Não me interpretem mal: nada tenho contra o espírito natalício, que chama a atenção para o calor, o humano, a luz, a alegria, a cor. Espero é que seja extensível a todo o ano, em todos os gestos que nos obriguem, sem obrigação - senão a moral -, de sermos mais generosos e, consequentemente, melhores seres humanos. E que não nos queixemos quando tivermos a barriguinha cheia.

Já agora, porque não ajudar com um gesto tão simples como jogar um pequeno quiz da WFP, para testar o seu QI da fome? Para cada pessoa que o fizer, será dada uma refeição a uma criança. Faça-o e partilhe:

http://quiz.wfp.org/

Resposta para o mail:
"You took the quiz - and fed a child!"
Ou então, para quem quiser ajudar e ao mesmo tempo assistir a um espetáculo de fado, pode aparecer no próximo domingo, dia 7, às 18h30, no Palácio Foz, no Cantar o Fado Contra a Fome. Vários fadistas e dois guitarristas participam solidariamente, juntamente com outras empresas, associações e instituições, para que este problema ( que ainda é um flagelo ) seja erradicado da face da terra.  O preço do bilhete é acessível ( de 5 a 25€ ) e aproveita para ouvir boa música, conhecer um espaço secular de requinte e brilho, enquanto contribui para um mundo melhor. É melhor assim.

( mais informações )

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