terça-feira, 4 de novembro de 2014

Deixa-me submerso (Ficção, 2006)



Enquanto se estava a afogar, vários pensamentos vieram à tona. Não o da morte. Nem o da vida em flashback. Nunca percebera como é que isso se passava com as outras pessoas que têm experiências idênticas, nos relatos da TV.

Não via a sua vida nem a cores, nem a preto e branco, ou sequer a sépia. Se a visse, vê-la-ía como recorda as fotos dos primeiros anos da sua vida, nos finais da década de 70... tão maravilhosamente esbatidas mas com nitidez suficiente para se recordar.
Enquanto o corpo, lentamente, mergulhava, esbracejava e conseguia sentir o frio da água e o frio da música que ainda conseguia ouvir no iPod. Tal e qual um baptismo forçado.
A vida não transbordava mas lembrava o rosto daquela que amava. E de todas as outras. Mas era no azul dos olhos dela que queria mergulhar. Não ali.

Enquanto esbracejava e tentava, agora com mais força (ou mais vontade), salvar-se, várias imagens, não bóias, vinham à tona. E ele à toa...

Enquanto o salvavam, desejou que tivessem demorado um pouco mais. O iPod continuava a tocar a música que fazia a banda sonora do seu afogamento e “Um pouco mais...”, desejava ele: queria isolar-se de todas as pessoas, da cidade, da confusão, da multidão. Queria afogar-se no afastamento de tudo aquilo. Mas voltou. Alguma coisa o salvou.

Tiraram-lhe, finalmente, os fones dos ouvidos e o salvamento terminou.

Diz-se que o último que fala é que tem razão. Talvez seja o último que morre.

Imagem :
"Ophelia" (pormenor), 1851-1852
Sir John Everett Millais (Tate Britain, Londres)
Ofélia é uma personagem da peça Hamlet, de Shakespeare, que canta antes de se afogar num rio na Dinamarca.

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