quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Próxima : indiscrição sem paragem (Ficção, 2002)



Que raio! Quem é aquele homem? …não para de olhar… disfarço, fingindo muito interesse na linha do metro. A estação não está apinhada, mas também não está vazia. Não é hora de ponta… é noite já.

E pronto! Teimou, está visto. Que chatice…

Será que eu tenho ar de maricas? Visto e pareço o mais normal possível. Que é como quem diz… não acho que tenha muito bom gosto. Daí a minha admiração!

Olho novamente - se calhar eu também devia parar de olhar. Posso estar a fomentar a situação. Não consigo evitar. Faz-me espécie… - e superficialmente passo os olhos por aqueles lados para verificar se parou de vez. Eu detesto ser observado. Aliás faço tudo para o não ser. Gosto de passar despercebido.

Gaita… lá está ele.

Já me deve ter tirado as medidas todas. Todos os centímetros. E eu continuo à espera do metro.

De todas estas passagens também eu, inevitavelmente, já o consigo descrever. Não é que queira… ao longe (consigo reparar apesar da distância) encosta-se ao outdoor com as mãos nos bolsos, blusão de ganga e calças escuras… não sei que tecido…percebo pouco disso. Cabelo médio, liso, escuro e de aspecto molhado. Barba por fazer, parece-me, pelos tons escuros que consigo observar daqui. Os olhos também não têm luz nenhuma.

Finalmente lá entro no transporte e sento-me no primeiro lugar vago e, principalmente, vazio. No exterior… ou seja, no interior do túnel mas lá fora, vejo o reflexo das coisas que se passam cá dentro. Continuo e observo. Não tenho coragem de olhar directamente as pessoas e finjo-me, mais uma vez, pensativo, como se a morte da bezerra estivesse no vidro da carruagem. E passa ele: o homem dos olhos escuros. Parou mesmo ao lado da senhora que se encostou a mim, cheia de sacos. Para além de gorda cheira a impulse dos 300. Mas o outro lá está. Em pé. Passa uma paragem, duas, três e às duas por três levanta-se a tal senhora: sai na próxima, adivinho. Ponho-me a adivinhar que o outro se vai sentar no lugar deixado vago. Enganei-me: deixou sentar outra senhora que traz um corpo quase sem cheiro, não fosse o dos amendoins e chocolate que sai do saquinho de emánémes que vasculha com os dedos e que vai pescando de vez em quando. Nem agradeceu ao cavalheiro.

A próxima é a minha paragem e ao preparar-me para me levantar reparo que ele já se encontra ao pé da porta de saída: lógico - também sai na próxima. Enquanto para o metro e avanço até à saída espero que iremos em sentidos opost… nem consegui acabar este meu pensamento… nem vale a pena… vamos mesmo no mesmo sentido. Eu vou atrás em passos mais lentos, para ver se o despisto. Desapareceu ele lá à frente e eu, em passo habituado à lentidão daqueles segundos. Não aumento a velocidade e quase parado o meu corpo avança para a estação do comboio que, pelo contrário, parece apressado apesar de estar parado. Eu rio (mostro apenas um sorriso cúmplice e pessoal a mim mesmo) do monstro de metal que só tem de esperar que o número 55 mude para 56 para poder partir. E é o que, precisamente faz, quando às vinte horas e cinquenta e seis segundo o tableu que avisa que esta hora, neste dia, nunca mais veremos.

Veremos…


Créditos de imagem: Subway Painting III (Version 2), 2005, óleo sobre tela, Hillel Kagan


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