sexta-feira, 23 de maio de 2014

Vá errar: Ultimato à Europa e à opinião pública



Ao passar pela Praça do Comércio, em Lisboa, vejo que está tudo a postos para a festa.

Tudo  muito arranjadinho, em tons de azul, cor da bandeira da Europa, a fazer pandant com o Tejo, ecrã gigante, e penso:
- Bem esmeraram-se desta vez: até se vai poder ver os votos em direto!
Depois reparo nos títulos que também andam espalhados pela cidade, até pela Praça para onde me desloco regularmente para trabalhar: Champions League 2014. Afinal aquilo não está preparado para as eleições europeias de 2014, que se realizam no próximo domingo dia 25, mas para um grande jogo de dia 24 (sábado).
Menos mal ou tanto pior. Sei agora que até um campo de futebol improvisado se instalou no local e que a brincadeira futebolística irá trazer uma receita de muitos milhões, que não chegarão para tapar os buracos orçamentais do país. Iriam ser precisas muitas bolas destas.
Acerca da outra 'festa' - a das eleições - já tem foliões a foliar o país que por estes dias é para eles o habitual circo. A pantomina ainda engana alguns (ou muitos) a quem as urnas os esperam, como uma morte eleitoral anunciada à partida: seja qual for o resultado, quem ganha não serão os eleitores, embora isso nos queiram fazer crer. E como temos de crer em alguma coisa...
A propósito, mas por mero acaso, numa destas noites esbarrei com as páginas de sociologia política, escritas por Fernando Pessoa. Há algum tempo que a obra se encontra na minha biblioteca, mas ainda não a tinha folheado.
Dizia o pensador-filósofo-sociólogo, mais conhecido por ser o poeta fingidor das múltiplas máscaras, que 

"Votar é errar.O voto é individual e a essência da opinião é não ser suscetível de fracionamento em indivíduos. A opinião pública é um ente, de que os indivíduos que sem querer a compõem são células. A opinião pública não é uma soma nem mesmo uma síntese, é um facto pré-intelectual.Concluir-se-á imediatamente: se a opinião pública é só uma atmosfera e não uma corrente, se é um estado de alma coletiva e não uma tendência para a ação, como hão-de os homens públicos governar com a opinião pública? Como hão-de saber o que ela é, se a essência dela própria é não saber bem o que é?O erro em uma objeção destas está no conceito democrático de governo. Se se julga que governar é seguir a opinião pública, não há resposta. Mas governar com a opinião pública não é segui-la: governar com a opinião pública é interpretá-la. A sociedade tem o seu esteio no instinto; o governo é um fenômeno intelectual. Ora a relação entre a inteligência e o instinto é interpretativa." 

Páginas de sociologia política, do sufrágio político e da opinião públicaFernando Pessoa, 1a. publ. in Revista Portuguesa, nº 23-24. Lisboa: 13-10-1923, p. 274-275.

Portanto, no próximo domingo, faça sol ou chuva, não se esqueça de exercer o seu dever cívico e vá errar.
Se preciso for, inspire ou inspire-se fundo em Pessoa, na prosa, na poesia ou nos pensamentos. Ou no seu Álvaro futurista, que há cerca de um século 'futuralizou' sobre Portugal e a Europa, num outro tempo mas que aos tempos de hoje se torna tão atual. Tente, como ele tentou, encontrar um futuro, um caminho ou um rumo. Para si ou para a Europa (se é que uma e outra não são a mesma coisa):
«Mandado de despejo aos mandarins da Europa! Fora.A Europa tem sede de que se crie, tem fome de Futuro!A Europa quer grandes Poetas, quer grandes Estadistas, quer grandes Generais!Quer o Político que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu povo!Quer o Poeta que busque a Imortalidade ardentemente, e não se importe com a fama, que é para as actrizes e para os produtos farmacêuticos!Quer o General que combata pelo Triunfo Construtivo, não pela vitória em que apenas se derrotam os outros!A Europa quer muito destes Políticos, muitos destes Poetas, muitos destes Generais!A Europa quer a Grande Ideia que esteja por dentro destes Homens Fortes — a ideia que seja o Nome da sua riqueza anónima!A Europa quer a Inteligência Nova que seja a Forma da sua Mateira caótica!Quer a Vontade Nova que faça um Edifício com as pedras-ao-acaso do que é hoje a Vida!Quer a sensibilidade Nova que reúna de dentro os egoísmos dos lacaios da Hora!A Europa quer Donos! O Mundo quer a Europa!A Europa está farta de não existir ainda ! Está farta de ser apenas o arrabalde de si-própria! A Era das Máquinas procura, tacteando, a vinda da Grande Humanidade!A Europa anseia, ao menos, por Teóricos de O-que-será, por Cantores-Videntes do seu Futuro!Dai Homeros à Era das Máquinas, ó Destinos científicos! Dai Miltons à época das Coisas Eléctricas, ó Deuses interiores à Matéria!Dai-nos Possuidores de si-próprios, Fortes Completos, Harmónicos Subtis!A Europa quer passar de designação geográfica a pessoa civilizada !O que aí está a apodrecer a Vida, quando muito é estrume para o Futuro!O que aí está não pode durar, porque não é nada!Eu, da Raça dos Navegadores, afirmo que não pode durar!Eu, da Raça dos Descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um Novo Mundo!Quem há na Europa que ao menos suspeite de que lado fica o Novo Mundo agora a descobrir?Quem sabe estar em um Sagres qualquer?Eu, ao menos, sou uma grande Ânsia, do tamanho exacto do Possível!Eu, ao menos sou da estatura da Ambição Imperfeita, mas da Ambição para Senhores, não para escravos!Ergo-me ante o sol que desce, e a sombra do meu Desprezo anoitece em vós!Eu, ao menos, sou bastante para indicar o Caminho!Vou indicar o caminho!»
Ultimatum (1917), de Álvaro de Campos (F. Pessoa)
Portugal Futurista, nº 1. Lisboa: 1917


"Entre as várias superstições verbais, de que se compõe a pseudônimo-inteligência da nossa época, a mais vulgarmente citada é a da opinião pública." 





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