sexta-feira, 30 de maio de 2014

Autocarro para outro cais: 80 anos em 8 minutos


Cheguei à paragem do autocarro, na Rua do Ouro, por volta das oito e um quarto da noite. Só lá estava um senhor idoso, a quem perguntei se o 36 já tinha passado, ao que me respondeu que não, que também estava à espera dele há já alguns minutos. Eu disse-lhe que não era normal aquele autocarro demorar tanto mas que o placar eletrónico indicava uma espera de 20 minutos.
- Ah, ainda acredita nessa coisa?
Um 'pois' depois, e sem dar por isso, o senhor, simpático, começou por meter conversa comigo (pensando bem, eu é que meti conversa com ele ao perguntar pelo bus). Ouvi atentamente e depois de poucos segundos de conversa de circunstância habitual sobre transportes públicos desvendou:
- Olhe, estou quase a fazer oitenta anos, você é um jovem.
Retorqui com sinceridade dizendo que não parecia nada e que eu também não era assim tão jovem.
- Mas ainda dá os seus passeios pela cidade. - disse-lhe eu.
- Por enquanto! Sou cego de uma vista desde os três anos e a outra também está quase cega. Não sei o que hei-de fazer quando ficar sem ver nada...
Reparei que o olho direito estava fechado, como ficou a minha boca, num silêncio triste e conformado que sabia das dificuldades que essa falência total da visão traria, mas tentando esboçar um sorriso acalentador.


- A minha filha só me procura para pedir dinheiro. Quer dizer, em nome do meu genro, que não tem coragem para o fazer. Arranjou este rapaz que não trabalha... diz que não pode trabalhar porque tem o braço direito magoado há pouco tempo, mas eu acho que não. Porque, olhe, diz que era desde novo um filho  que precisava de atenção especial. Escreve com a mão esquerda. Por isso, está a ver... Aquele problema não é de agora. E ela é que vai ter comigo a pedir dinheiro. Já lhe emprestei 3.500 euros. Quer dizer, 'emprestadei'. No outro dia ele veio ter comigo e disse que me havia de devolver o dinheiro que lhe emprestei, mas eu respondi-lhe que não foi a ele que emprestei ('emprestadei') o dinheiro - não foi ele que mo pediu. Por isso não é ele que me deve nada. Então se não fosse um homenzinho não tinha sido ele a pedir? 

Eu nada mais tive que outro "pois" a acrescentar à conversa, e ele continuou:
- O meu neto fez anos a semana passada. Catorze. Eu liguei para lhe dar os parabéns e o miúdo estava sozinho em casa, os pais não tinham passado o dia com ele. O pai, pelo menos, que não trabalha. 

Avistei ao longe o enorme número do autocarro que esperávamos e interrompi-o dando-lhe conta dessa informação. Antes de entrarmos no autocarro despedimos-nos com um cumprimento de mão, daqueles que se dão a quem ouve as nossas histórias de vida. Agradeceu-me por ter tido a paciência de ouvir a sua, mas eu tentei assegurar-lhe:
- Ora essa! Também foi uma forma de passarmos o tempo à espera do autocarro. 
Deu-me a primazia de entrar e nunca mais nos vimos.
Se todas as esperas fossem preenchidas com conversas e histórias destas, com a simpatia e paciência de quem tem o privilégio de a poder partilhar com os outros...
Bem melhor do que um placar eletrónico que sempre se engana nos minutos, é o desabafar de uma vida, mesmo que essa seja composta por desenganos.
Foi assim que ao perguntar pelo 36 recebi em troca em 8 minutos uma história de vida com quase 80 anos.


Cícero dizia que "Os homens são como os vinhos: a idade azeda os maus e apura os bons."

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