domingo, 4 de janeiro de 2015

Homens e Deuses I : Odisseia, de Homero


Viagem à volta de um clássico
em (mais ou menos) 380 palavras


Não posso considerar a minha ingressão pelas histórias épicas como um processo pacífico. A minha imaturidade (confesso) não podia continuar a ser uma desculpa, nem a motivação uma obrigação. Algumas histórias pelas quais já percorrera (algumas sob a forma de peças de teatro – um género que me apaixona particularmente) causaram um certo interesse mas a “impaciência, distracção e inexperiência”, da juventude, como tão bem analisa Italo Calvino numa das suas organizadas definições de “clássicos”, terão impedido uma “evolução” literária no sentido dos clássicos.

Com pouco ou muito sentido, o início foi como um barco que não consegue ultrapassar a rebentação das ondas mais próximas da praia. Até que cheguei a uma “ilha” de sensações que me levaram a um mundo inimaginável, só imaginado por um escritor como Homero. Apesar de não poder ser considerada como um registo histórico, mas uma “realidade fictícia e literária” (Romilly), a sua linguagem será inspiração para a literatura grega clássica.

Uma das razões para que esse mundo nos faça sonhar são as suas personagens, quer sejam homens ou deuses grandiosos, que ele aproxima com mestria a características tão humanas. Quando Telémaco diz a Ulisses, depois deste voltar à sua “forma normal”:
«Há bocado eras um ancião, coberto de sórdidas roupas; e agora assemelhas-te aos deuses [...]» - Odisseia, canto XVI
ou no episódio da ilha de Eeia, onde vive a “terrível deusa de voz humana”, Circe dos belos caracóis (Odisseia, canto X), essa comparação é evidente. A crueldade da deusa, aliada à sua beleza, numa aparência tão humanizada que se torna inverosímel e “extra” terrestre, criam um intrínseco mas interessante paradoxo. Como pioneiro da mitologia grega, Homero enaltece, nos deuses, as qualidades e defeitos dos homens num nível muito superior. Aos deuses são-lhes conferidos atributos mortais (ciúme, infidelidade, humor) – tal como na tragédia grega. Mas não nos podemos esquecer que são “seres” imortais e presentes onde menos se espera.


Nesta simbiose Homero consegue envolver-nos nas suas histórias, quer identificando-nos com valores como a família (a busca de Telémaco pelo pai, ou do desejo inquietante deste de regressar a casa) ou a fidelidade (de Penélope, que aguarda pelo regresso de Ulisses, não sabendo sequer se este está vivo ou morto, fazendo e desfazendo a sua teia como uma desculpa alongada para fugir aos pretendentes que não ama).
Outra das razões que aliciam o interesse do leitor são as descrições que o “transportam” para as histórias, como por exemplo na cena no país dos Feaces, quando Nausícaa (depois de acordada pela deusa Atena, que lhe aparece num sonho) vai, acompanhada pelas aias, ao rio lavar roupa (e onde virá a encontrar Ulisses):

«A donzela trazia dos aposentos os vestidos cintilantes. Enquanto ela os pousava sobre o carro bem polido, a sua mãe metia num cesto mantimentos, guloseimas de todas as espécies, e deitava vinho num odre em pele de cabra.» - Odisseia, canto VI 

Podemos imaginar facilmente, com interesse, o episódio, mas igualmente interessante são as interpretações que os artistas têm atribuído a inúmeras outras cenas, como, por exemplo, Christoph Amberger, o pintor alemão que no século XVII, no seu quadro “Odisseu e Nausícaa” (1619), nos mostra como Ulisses aparece todo nu a Nausícaa (um pouco mais à frente no canto referido).
«(...) o ilustre Ulisses saiu da moita; na espessa floresta, ele partiu com a sua forte mão um ramo revestido de folhas para assim cobrir o seu corpo e esconder o seu sexo. [...] Assim Ulisses ia ao encontro das virgens de lindos caracóis, inteiramente nu como estava; mas a necessidade instigava-o. [...] elas fugiram cada uma para seu lado, dispersas pelas margens. Só a filha de Alcínoo ficou, pois Atena pusera ousadia em seu espírito, eliminara o medo dos seus membros.» - Odisseia, canto VI

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CALVINO, Italo – Porquê ler os clássicos (Teorema, 1993);
HAMILTON, Edith – A Mitologia (Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1983);
HOMERO – Odisseia (Publicações Europa-América, 2000);
PEREIRA, Maria helena da Rocha – Estudos de História da Cultura Clássica, I Volume (Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2006);
ROMILLY, Jacqueline de - Homero, Introdução aos poemas Homéricos ( Lisboa, Edições 70, 2001); A Tragédia Grega  (Edições 70, 1997);

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