quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Há lodo (e gajas nuas) no cais


A peça de teatro chama-se Cais Oeste, foi escrita por Bernard-Marie Koltès, considerado um dos expoentes máximos da dramaturgia francesa contemporânea, tem encenação do croata Ivica Buljan, que tem aqui a sua primeira colaboração com uma companhia portuguesa: a Companhia de Teatro de Almada. Está em cena no Teatro Municipal Joaquim Benite (TMJB), em Almada, de quarta a sábado às 21h30 e domingo às 16h, até dia 2 de novembro (2014).

Sim, há uma gaja nua em palco, a certa altura. Pronto, não guardo mais o suspense e espero que o título deste post suscite mais curiosidade para que se leia. E entra a Soraia Chaves. 
Mas a gaja nua não é ela, embora quase seja. Temos pena. Sobre ela e a sua interpretação no palco - a primeira a que assisto - não me alongo mais. É uma tentativa, como muitas outras a que já assisti. A rapariga é gira, tem um bom corpinho, uma carinha laroca e é agradável ao olhar, do alto dos seus saltos altos, saia e casaco de pele sobre uma blusa por onde quase saltam à vista outros seus atributos, por que é mais conhecida. Talvez só daqui a muitos anos se vá conseguir separar da fama que o cinema lhes trouxe (a ela e às suas amigas mamocas). Tem o seu mérito: fez com que esse filme tenha sido um dos filmes portugueses mais vistos de sempre. Na televisão também fica bem. Mas aqui fala-se de teatro.

O palco simula um cais abandonado onde nem para se ir morrer já serve. O cenógrafo Jeans-Guy Lecat criou uma espécie de armazém decrépito que ocupa quase todo o espaço, em comprimento, largura e altura. Quase sem paredes nem teto, ainda serve de abrigo a muitos que o procuram. Abrigo físico e humano. Quem o procura para morrer já foi rico, quem o encontrou para viver nunca o terá sido. Os personagens que naquele bairro vivem, convivem e esperam como aranhas, que por engano as suas presas mais tarde ou mais cedo ali caiam, para lhes devorar a riqueza que lhes resta, o resto da dignidade que já não têm. 

O jogo corporal dos atores, que Alexandre Pieroni Calado preparou, cansa. Cansa-os mais a eles do que a nós, espectadores. Aquela realidade está provavelmente longe da destes. Isso sossega-nos. Por isso apanha-nos de surpresa que os dois jovens (Ana Cris é heroína personificada, no duplo sentido da palavra) se dispam da sua vida perante nós, sem pudor. Literal e simbolicamente despidos fornicam à nossa frente. São apenas alguns segundos de prazer para o jovem casal, e chegam. Espantaria o ato a um público de início e meados do século vinte, quando as performances dadaístas, depois futuristas, tinham esse objetivo. Já se sabia que assim era. No século vinte e um já não seria de esperar o choque que a nudez, só por si, causa. Maior espanto e choque me causa os risinhos de jovens deste tempo, de um mundo desenvolvido, que nunca devem ter visto corpos desnudados, de machos ou fêmeas, à sua frente. Mas mais ainda o de adultos feitos, casais, que com toda a certeza já conhecem de ginjeira o ato da procriação e do prazer. Como eu costumo dizer:

- Peleeeeeease!

Que é como quem diz:

- Pelo amor da Santinha...

É uma imagem que entra por um qualquer ecrã deste mundo evoluído, muitas vezes sem a termos pedido. (As outras vezes é quando se pede ou pesquisa na world wide web e facilmente se encontra). Antes de entrar na sala do espetáculo eu já tinha sido advertido, por um amigo, que por sua vez tinha lido as críticas de diversos jornais e revistas, penduradas no espaço do foyer do TMJB, criado para o efeito. Diz que a crítica não tinha poupado os atores à sua tentativa de encontrar os respetivos personagens. Eu, que não costumo emprenhar pelos ouvidos (nem por outro qualquer orifício, acrescente-se), libertei-me dos preconceitos que muitas vezes estas críticas podem causar. A boa crítica causa outro tipo de reflexão, muito mais útil.

Não posso deixar de sublinhar a interpretação de Teresa Gafeira. A experiência nota-se. Até quando rebola no chão de um lado para o outro, à boca de cena, enquanto diz o seu texto, ora em português, ora em espanhol, ora numa língua que não percebi, a sua qualidade salta à vista. As palavras saem-lhe sempre límpidas, fortes e causam comoção. Não preciso de as entender. Noutras partes da peça, com outros atores, as palavras não foram tão claras e a dicção fazia com que se perdessem alguns significados.

Salve-me também o desenho de luz de José Carlos Nascimento mas, principalmente, o som magistral de Mitja Vrhovnik Smrerar. Que interessa que o senhor tenha um nome que me é difícil de pronunciar se ele foi mestre em me apresentar esta outra linguagem, que é a música, que casa tão bem com o tema e acrescenta o dramatismo cénico que se pretende.

É curioso que em alguns momentos dei comigo a fazer comparações com outras peças já  apresentadas pela CTA, sobretudo de Shakespeare. Talvez pela referência teatral que já são ou porque gosto sempre de comparar (o incomparável) com o que de bom se faz, se fez ou se vai fazendo. Depois, ao ler as notas de uma entrevista com o encenador (no programa, disponível no balcão da bilheteira), este refere que todas as cenas nas peças de Bernard-Marie Koltès descrevem as relações entre vendedor e comprador, "entre quem tem alguma coisa para vender e quem está interessado em comprar". E compara-o a Shakespeare. No entanto, aqui o mercador não está em Veneza mas num outro cais, talvez Cacilhas, até porque Ivica Buljan tenta sempre pensar no contexto em que está a trabalhar. 

No jogo entre quem quer vender alguma coisa e quem não quer comprar ou pagar, a dança dos corpos é ao mesmo tempo repulsiva e hipnótica. Este paradoxo faz parte do mundo tão contemporâneo (tão atual para um texto escrito nos anos oitenta) e tanto real quanto metafísico e metafórico. Os atores não descobrem apenas o físico uns dos outros. Eles nada têm, talvez nem corpo.

"É que Ivica Buljan tenta dar tanta importância às ideias como à matéria. Como se estivesse à procura de tornar a dramaturgia palpável através dos corpos dos actores, como se a superfície do trabalho teatral fosse a camada que permite mergulhar no que realmente lhe interessa." (Levi Martins)

Não é caso para rir. Muito menos para risinhos tímidos e parvos de algum espectador que ainda está a aprender, embora muito bem, a ser público de teatro. Ter ficado até ao fim, depois de mais de duas horas, sem intervalo, a absorver tantas emoções, é de se lhe tirar o chapéu e toda a roupa de eventual pudor conservador. Haja evolução de pensamento.

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Intérpretes Alexandre Silva, Ana Cris, António Fonseca, Danilson Delgado, Diogo Dória, Pedro Walter, Soraia Chaves e Teresa Gafeira


Encenação Ivica Buljan

Tradução Ernesto Sampaio

Cenografia Jean-Guy Lecat
Figurinos Ana Savic Gecan
Desenho de luz José Carlos Nascimento
Som Mitja Vrhovnik Smrekar
Assistência de encenação e preparação corporal Alexandre Pieroni Calado

Direcção de produção Carlos Galvão

Direcção de montagem Guilherme Frazão

Operação de luz e som Miguel Laureano
Montagem Daniel Verdades, Hugo Glória, Ivan Teixeira, Joaquim Silva, João Martins, Miguel Laureano, Paulo Horta, Pedro Machado, Renato Delgado, Sandro Esperança, Tozé Martins
Direcção de cena João Farraia

Grafismo João Gaspar

Edições Ângela Pardelha

Comunicação Levi Martins
11 OUTUBRO a 02 NOVEMBRO, 2014 | SALA PRINCIPAL // QUA a SÁB às 21h30 | DOM às 16h00
Duração: 2h15 M/16


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