sábado, 4 de outubro de 2014

Sorria, não está a ser filmado



Não será o mundo muito melhor se sorrirmos mais?
O que é que ganhamos ao espalharmos sisudismo* pela terra e à nossa volta?
Eu não sou propriamente uma pessoa que ande sempre com um sorriso nos lábios, mas tenho inveja (da boa) daquelas pessoas que conseguem ter essa expressão na cara 24 horas por dia. Penso que  é genético e é uma raridade. A maior parte de nós não é assim. 
A nossa expressão facial normal é asséptica: não tem expressão. O que não quer dizer que não tenha emoção. O que os olhos não vêem a maior parte das vezes o coração sente. Por muito que se treinem os inúmeros músculos, eles não conseguem estar sempre, a toda a hora, em qualquer momento, faça chuva ou faça sol, em tensão de sorriso. O que me deixa tenso, por vezes. Eu bem tento, mas não consigo. Eu bem treino, mas é difícil ter isso sempre em consciência. 

Tomar consciência de que é necessário sorrir e rir, de vez em quando, com regularidade, é imperativo para sermos felizes. A felicidade não é uma constante. Ela faz-se de intermitências e encontra-se quando encontramos um motivo para sorrir. Qualquer que seja o motivo, de qualquer tamanho ou importância. Poucas vezes é por termos muito dinheiro, muitas vezes é por termos algum dinheiro, mas mesmo quando se tem pouco ou nenhum dinheiro, isso não é fator crucial para ser feliz.

Ser feliz é sorrir com as coisinhas mais sem importância que existem na vida. O que não tem importância para os outros pode ter para nós. Olhar para o céu e ver um azul, um cinza ou um sol, uma ou muitas estrelas, qualquer lua, minguando, crescendo ou cheia, qualquer mar, praia, rio, uma lareira, uma árvore de Natal, uma pinha, uma abóbora, luzes, barulho de uma multidão ou silêncio de uma escuridão, a quantidade de novas mensagens no canto de um ecrã, uma chamada perdida que logo se acha, um aperto de mão, um cumprimento sincero, um abraço com ou sem beijo, um beijo com ou sem saliva, vestir aquela roupa, cheirar aquela flor, aquela terra molhada, ficar molhado pela chuva ou por um mergulho, mudar aquela planta de vaso, arrancar aquela erva daninha... Assim se semeiam sorrisos na nossa vida. Isso, asseguro-vos, contagia tudo e todos à nossa volta. Mesmo que semeie a inveja por esse sorriso que o outro tem e que eu quero ter, porque fará com que se queira tê-lo e com que se procure encontrá-lo também.

É por isso que gosto de aparelhos que tiram fotografias. Assim que se apontam a alguém tem o condão de transformar em sorriso os lábios de uma pessoa. Quase todas as pessoas. Mesmo que o sorriso seja só para a camera, não creio que tenha de ser falso. Ele tem qualquer coisa de real na imagem que fica em digital ou em papel. Tem o poder de relembrar que naquele momento, daquele instante captado, fomos mais felizes. 


Prova do que digo?
Lembram-se do Candid Camera? O programa de televisão teve a primeira edição em 1948, na altura apresentado pelo seu criador Allen Funt (que apresentou ou co-apresentou a maior parte das séries até a doença o impedir) no canal americano ABC (embora tenha passado por outros, como as cadeias NBC ou NBS). Mas a série apresentada pelo Dom DeLuise, entre 1991 e 1992, é a que lembro melhor por ter acompanhado a minha plena adolescência. Ainda hoje recordo o famoso slogan jinglado:
Smile! You're on Candid Camera!
Foi percursor de todos os apanhados que o sucederam. No final das situações os apanhados riam-se sempre quando descobriam que tinham estado a ser filmados. A camera já la estava, eles é que não sabiam. Bastava a consciência de que afinal ela lá estava (e tinha estado) para sorrirem. É claro que a situação é que gerava o ridículo e a inevitável graça. Daí o apanhado. Mas a pessoa sorria e os espectadores também. Daí o sucesso do programa, também em Portugal.

É claro que sempre haverá pessoas que não gostam de ser capturadas dessa ou de qualquer outra forma por uma fotografia ou filme. Mas são cada vez menos essas pessoas. Há muito da alma de cada um que ali fica, seja mais tímida ou desinibida a pose. Embora as poses sejam cada vez mais desinibidas - incluindo de crianças que ainda nem sequer sabem o que é que quer dizer inibição ou exposição, cuidados extras que cabe aos pais controlar, mesmo que sejam eles próprios os responsáveis por essa exibição orgulhosa -, prefiro pensar que elas espalham sorrisos pelo mundo. Logo, mais felicidade, logo, menos sisudismidade.

Não esperemos, contudo, por uma camera ou de um artifício qualquer, ou mesmo por outra pessoa, para o fazer: sorria ao desbarato, mesmo que ao resto do mundo pareça um bocadinho parvo. Antes parvo feliz do que um rico sisudo e triste.

(É claro que se for rico, parvo e feliz é muito melhor.)

Há quase trinta anos Miguel Esteves Cardoso, numa das suas crónicas (Neura) para o jornal Expresso, explicava muito witty-witmente** porque é que os portugueses se vangloriam e orgulham da sua tristeza fadista (e não fatalista). Eu sei que recorro muitas vezes a este escritor-criador e criativo (um destes dias explico o porquê, dedicando-lhe um post), mas ele acerta na mouche. Não transcrevo todo o texto mas apenas um parágrafo que espero suscite curiosidade para ler o original***:

"A Neura não tem cura porque os Portugueses, quando a têm, não a querem curar. Querem é alimentá-la. Quando estamos com a Neura é como se estivéssemos com uma grande amiga nossa. - "O quê? Não me digas que não conheces a Neura?" Caso a Felicidade bata à porta, não a deixamos entrar e, com a porta semicerrada, sussurramos-lhe "Desculpa lá, ó Felicidade, mas agora não dá. - é que estou com a Neura..." E a Felicidade fica na escada." (sic)

Para terminar, coloquemos os olhos no video de apanhados da Rituals, que a marca criou para uma campanha que tem o slogan apropriado a este post:
When you smile to the world, the world smiles back.
(Quando sorris para o mundo, o mundo sorri para ti. - minha tradução) 

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* sisudismo  - substantivo, palavra que deriva de sisudo (adj.), aquele que está sempre de trombas. Não confundir com elefante - esse não consegue tirar a tromba, por muito que se ria.
** witty-witmente - advérbio de modo de estar, derivante de witty wit (subst.); carateriza alguém que tem um sentido de humor espirituoso.
*** Neura faz parte de uma coletânea de crónicas em A Causa das Coisas.

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