segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Outra história pós-laboral (2000)



Hoje é dia de céu. Só me apetece olhar para ele a ver se chove. Dava na meteorologia, mas… nem o sol. Eu gosto de sol mas hoje eram uns pingos de chuva que queria ver (talvez sentir).
O céu é lindo. Mesmo com as nuvens cinza. O ambiente é húmido mas eu sinto-me seco e quente. Desejo ser o vento para gelar os cabelos vermelhos e pretos da rapariga que vai sentada à minha frente. É bonita. Parece uma amiga minha.
Gostava de a conhecer mas sou demasiado discreto para sequer mostrar algum interesse.

Quando chego à estação há um homem com um computador portátil à minha frente. É sexta feira e o expediente parece ainda não ter acabado para ele. Continua.
Já no comboio, depois de uma estação, paramos no meio do caminho e no interlocutor agradecem a nossa compreensão pela espera. Qual compreensão? Não tem que agradecer. Eu queria compreender…

O homem do portátil parou de trabalhar. Olha, agora, a rapariga do cabelo vermelho, que apanhou o mesmo comboio que eu. Parece gala-la. Será que quer o mesmo que eu? Se quer, é muito menos discreto. Não devemos querer a mesma coisa.

Continuo parado – é uma avaria noutro comboio – sei-o pelo mesmo interlocutor de há bocado,. Já não me apetece olhar para o céu. Não anda e eu gosto de vê-lo é em movimento.

Assim parece que o tempo parou. Mas eu continuo a escrever fervorosamente. Tenho sono e encosto-me à janela. Se adormecer, para além de passar melhor o tempo, tento ganhar o tempo que podia ter ficado a dormir de manhã.

Quando acordo vejo o comboio no mesmo sítio. Será que dormi muito tempo? Há quanto tempo estarei aqui? Tenho demasiada vergonha para perguntar as horas ao senhor que vai ao meu lado. Será que viajei no tempo? O relógio do comboio mostra umas horas em que eu não devo confiar pois nunca costuma bater com o meu (quando o tinha, antes de ter sido assaltado a semana passada a sair da estação).

O céu move-se… digo… o comboio. Não é que eu tenha pressa. Quando chego a casa não está lá ninguém. Desejava que fosse segunda-feira amanhã. Olhar para os meus colegas, ainda que falemos pouco e só de trabalho, sempre é melhor do que ver televisão o dia todo.

Adoro o céu. Se pudesse morava nas nuvens e de vez em quando escondia-me da terra para que não me pudessem ver.

Continuo a achar a rapariga do cabelo vermelho interessante. São mesmo nuances vermelhas sobre o preto natural e brilhante. E contrastam com o resto da sua figura. Misteriosa e… sinto qualquer coisa no ar. Ela está duas filas à minha frente. O homem do portátil de vez em quando disfarça que não olha – muito mal e raramente – dá muito nas vistas – típico.

Ela, sinceramente, não me transmite vida nenhuma. Própria.

Ele vê-se logo que vai ao futebol aos fins-de-semana com os amigos, e talvez jogue. Acabou o curso (sabe-se lá de que curso chato) e tenta, como aliás todos nós, fazer passar-se por executivo. Eu faço passar-me por uma pessoa e como tal desejo conhecer a tal rapariga. Tanto. E chego a desejar, no minimo, que ela olhe uma única vez que seja para mim. Nem sabe que eu existo. Por isso preferia morar lá em cima. Não quero mover-me. Sim, deixar-me voar com o pensamento naquilo que quero e não tenho.

Chego a casa entretanto.

Qual casa?

Assombrada de vazio, nem um beijo. Não tenho paciência para animais domésticos e pouca tenho para me domesticar a mim mesmo. Não gosto de fazer ginástica e sento-me longas horas, a ler um jornal da semana passada ou do dia anterior. Nem vejo a data. Só as letras gordas. Já me chegam os números de contabilidade durante todo o dia. Chega de caracteres. A música aborrece-me. Toda. Nem penso se sou aborrecido.

Gosto de cozinhar. É a minha emoção principal para todo o dia. É um sonho: morar e cozinhar nas nuvens. Pratos grandes para servir à minha... ao meu amor que... terei?

Acho que cozinho muito bem. Não sei porque nunca ninguém provou. Só eu. E eu gosto, por isso devo ser bom. De vez em quando arrisco no MacDonalds. É mesmo um risco, uma aventura. Como ver filmes de terror: uma emoção de medo e desejo. Um horror que gosto de sentir... e saboreio.

(História escrita originalmente em papel.)


* * *
FAZ LIKE NA PÁGINA DO FACEBOOK 



Sem comentários:

Enviar um comentário