quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Da al-qatifâ ao soalho flutuante, passando pela idade dos parquets


Em 1986 (tinha eu 10 anos) o Miguel Esteves Cardoso escrevia semanalmente crónicas para o jornal Expresso. Uma delas dedicou-a à alcatifa* (nome de origem árabe, al-qatifâ**), que então considerava "um dos grandes equívocos do século XX, expansões lanudas de grande monotonia e vulgaridade, (que) privam os pés de contactar directamente com a dura realidade do soalho, habituando o Homem a uma falsa impressão de onde pisa, criando nele o culto fútil e amaricado do 'fofinho'". Estes eram os anos em que os chãos que se pisavam necessitavam, de quando em vez, do seu "champooing" e outras manutenções de que as pessoas se haviam de arrepender, mais tarde ou mais cedo.

Eu lembro-me muito bem desses tempos e confirmo a moda. Quase toda a casa dos meus pais em Lisboa, para onde viemos morar mais ou menos nesse meado de década, era coberta nesse material, que amortecia muito os passos que dávamos, diminuindo o volume aos ouvidos das senhoras de idade que moravam no andar de baixo, de um prédio antigo com chão em madeira. Também o novo apartamento (a estrear) para onde nos mudámos nos finais dos anos 80, tinha o chão forrado a fofinha alcatifa, mundo apetecível e ideal para milhares de hediondas criaturas minúsculas, responsáveis pela maior parte das alergias de então (facto acrescentado por mim a esta narrativa mas não comprovado cientificamente).

O Miguel foi um visionário e anunciava, no final dessa crónica, o fim das alcatifas nos lares portugueses, imaginando que um dia mais tarde as pessoas se ririam com a simples menção à palavra 'alcatifa', que daria lugar a um mundo mais brilhante, de soalhos cintilantes e envernizados, livres da mordaça que durante anos os aprisionara. Tinha muita razão. Assim foi.
A época da alcatifa foi substituída pelos áureos tempos dos soalhos em parquet, madeira natural, que envernizada dava outra luminosidade a qualquer divisão. 
Mas este tipo de pavimento também exigia muitos cuidados. Encerar e afagar um chão coberto nesse material era muito trabalhoso. O meu pai (outro visionário mestre da bricolage) quando decidiu retirar a alcatifa, optou por cobrir o chão com tijoleira/ azulejada, outro material, já na altura em voga. Estávamos nos primórdios da década de 90. Ainda hoje é uma opção no revestimento imobiliário. Eu próprio, na minha casa atual, tenho este tipo pavimento em quase todo o chão da sala, menos no quarto.


Este material tem a desvantagem de ser frio. Por isso se tem optado por colocar o soalho flutuante, um material duradouro, relativamente barato, fácil de colocar, imita as propriedades da madeira, dá luz a uma divisão, é confortável e acolhedor. Mas o mercado está cheio das mais variadas soluções, das cerâmicas às madeiras flutuantes, dos mais naturais aos mais sintéticos. Os vinílicos, por exemplo, segundo a descrição de uma empresa especializada***, são "Pavimentos lisos, pigmentados ou estampados, de elevada resistência e fácil limpeza onde o Poliuretano retira a necessidade de manutenção." As opções abundam, para cada local específico que se deseja cobrir neste material: há os acústicos (com base em espuma e grande poder de absorção acústica e ao choque, "com propriedades bacterianas"), há os autoportantes (mosaicos com colagem adesiva), condutivos (ou anti estáticos, mais apropriados para zonas técnicas como salas de informática ou de cirurgia), há os 'paredes', "Impermeáveis, com tratamento fungistático e bacteriostático". Já o linóleo é fabricado a partir de óleo de linhaça, flor da madeira, pedra de cal, pigmentos e juta. É amigo do ambiente já que é biodegradável.

Falta aqui falar, por exemplo, da corticite, outro derivante da madeira que durante anos foi moda nos pavimentos mas que agora é moda noutras aplicações bricolágicas, da arquitetura ou do design ao mundo da moda e acessórios. Apesar da madeira ser um clássico material, recorrentemente usado, reutilizado e reinventado, a alcatifa vem de vez em quando pontuar um ou outro projeto de decoração de interiores. O que vem provar que não morreu, definitivamente. Ela adormeceu para se erguer sem as desvantagens que tinha nos anos oitenta. 

Espero que por esta altura o meu leitor não tenha desistido já de ler este post, aborrecido ou adormecido pelos termos técnicos sem interesse que discorri acima. Se ainda aqui está, gabo-lhe a paciência e agradeço a simpatia por continuar a ler. Apesar da descrição quase gráfica dos tipos de materiais, e além de alguma cultura adicional sobre pavimentação, que com certeza irá recordar da próxima vez que precisar de mudar aquele soalho lá em casa, fiz uma viagem à história mais recente dos pavimentos portugueses, cujas opções disponíveis dizem sempre muito sobre as próprias pessoas que os pisam. Sobre o seu estilo de vida, por exemplo. 

Agradeço ao Miguel, por esta reflexão, provavelmente na lista das mais inúteis que já fiz, mas que ainda assim não impediu que me inspirasse os pensamentos e a escrita. Como sempre faz a maior parte dos seus textos. Os meus - como este - nem de longe se aproximam dos dele, mas pelo menos a isso posso aspirar. Aspirar bem, para que não restem ácaros de dúvidas literárias.

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* O texto em referência tem como título Alcatifa e faz parte de uma coletânea de crónicas reunidas e editadas no livro A Causa das Coisas (1987)
** Para quem já não se recorde, alcatifa é "o nome que se dá a um tapete de fibra, de lã, ou outro material, com que se reveste totalmente o soalho de uma divisão" (In O Português sem Erros, 2009, Selecções Reader's Digest/ Texto Editores)
*** Não interessa a referência. Quem quiser saber o nome pode sempre googlar.

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